Sorria, você é refém

A conectividade naturalizou ainda mais a violência por possuir um público cativo
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JÚLIO MIRAGAIA

Durante a noite da última sexta-feira, 27, uma família foi feita refém de assaltantes que invadiram uma residência no Bairro Jardim Marco Zero, zona sul de Macapá.

Seria mais um caso, o segundo assalto com refém registrado em 2017 no Amapá pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope), não fosse por um fato incomum.

Um dos assaltantes, Rômulo Crelen da Silva Campos, de 22 anos, realizou uma transmissão ao vivo pelo Facebook, com duração de cerca de um minuto dos momentos em que mantinha a esposa do proprietário da casa refém e negociava com a polícia as condições de sua rendição.

O jovem ainda fez mais uma postagem, atualizando seu status na rede social, com a seguinte frase: “Perdi, … to com refém”.

O caso teve certa repercussão na imprensa e nas redes sociais, acredito que pelo fato de não termos visto assaltantes realizarem um ato como esse. Porém, não é a primeira vez que nos deparamos com a espetacularização da barbárie em tempos de redes sociais.

Bandido transmitiu assalto pela rede social

Bandido transmitiu assalto pela rede social

A carnificina nos presídios, decapitações e execuções de detentos em estados vizinhos como Maranhão, Pará ou Amazonas, são fatos recentes e todos foram registradas pelos próprios presos. Esses casos renderam inclusive a venda de muitos DVDs por camelôs, tanto no caso de Manaus esse ano, como o de Pedrinhas em 2014.

Esse tipo de ato bárbaro sendo exposto não é exclusividade do sistema penitenciário dos estados da Amazônia Legal ou de jovens infratores que cometem tais ações. É um “comportamento histórico e mundial”, se é que podemos fazer esse tipo de definição. Faço cheio de dúvidas, tentando tatear ou me aproximar do que ocorre.

Uma rápida pesquisa na internet sobre as execuções do Estado Islâmico mostra que não foram poucas as que foram feitas com transmissões ao vivo. Inclusive vídeos com crianças executando prisioneiros com tiros na cabeça.

Kafka: espetacularização é antiga

Kafka: espetacularização do sofrimento é antiga

Talvez o escritor tcheco Franz Kafka, nos ajude a desenvolver uma reflexão ou dar uma luz (pequena que seja) sobre o assunto. Em sua obra, “Um artista da fome”, ele conta a história de um jejuador que torna o ato de não se alimentar no seu espetáculo e chama a atenção da sociedade até que perca graça a ação. O protagonista acaba morrendo esquecido pelo público e é substituído em um circo por outra atração, uma pantera.

Kafka nos mostra, em 1922, um recorte de uma sociedade sedenta por espetáculo, numa situação fantástica, mas próxima da realidade. Porém, esse prazer pelo grotesco e pelo grande entretenimento não é parte do comportamento de um período histórico apenas. As arenas do império romano, a caça às bruxas na idade média e tantos outros fatos falam por si.

Mas os avanços dos meios de comunicação, principalmente a nossa novíssima sociedade conectada por internet, redes sociais, facilidade em emitir e receber mensagens, que tornaram as coisas muito mais intensas.

O espetáculo que antes era na arena, no estádio de futebol, na televisão, tem um território mais extenso do que em qualquer outro momento da história.

Para haver a transmissão ao vivo de um assalto com reféns, de crianças executando presos políticos, estupros ou qualquer outra forma de ato violento, para todas essas ações há um público. Como em “Um artista da fome” o público pode enjoar rapidamente de uma modalidade do grotesco e, rapidamente, desejar consumir outra.

Criança do Estado Islâmico aponta arma para cabeça de soldado antes de matá-lo

Criança do Estado Islâmico aponta arma para cabeça de soldado antes de matá-lo

É diante desse tipo de comportamento que estamos não somente agora na segunda década do século 21. Celebramos a barbárie há muito tempo e, em tempos de relações cada vez mais líquidas e numa sociedade moralmente decadente, a tendência é que o que nos espera deve ser mais violência ao vivo, pois temos um público cativo, à espera do canibalismo em tempo real.

A conclusão que podemos tirar é que não se trata apenas de dois assaltantes fazendo uma família refém e transmitindo ao vivo pelo Facebook. Estamos todos reféns de uma sociedade que torna qualquer coisa em objeto de consumo e consequentemente em espetáculo. Tudo vale pelo status da rede social, pela repercussão, pelo acesso, por ser notado.

Onde isso vai parar esse artigo não é capaz de chegar a um ponto final sem uma bola de cristal, mas seguimos firmes, em direção a um caminho que naturaliza cada vez mais a violência. E o pior. Estamos com uma venda nos olhos sem notar.

Seles Nafes
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