Crônica: o céu de Saigon de cada dia

Intimismo da obra de Caio Fernando Abreu convida a construir "paisagens internas"
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JÚLIO MIRAGAIA

Dos contos de Caio Fernando Abreu, um dos meus favoritos é “Sob o Céu de Saigon”, do livro “Ovelhas Negras”. Trata-se de um registro de um observador anônimo de um fim de tarde de sábado qualquer, onde duas figuras igualmente anônimas, solitárias e intimamente perdidas, andam pela Rua Augusta, na cidade de São Paulo, ora no mesmo sentido, ora em sentido oposto.

O escritor gaúcho, nascido na cidade de Santiago, foi nos últimos anos absurdamente maltratado por conta do uso de uma enxurrada de falsas citações a ele atribuídas nas redes sociais, de conteúdo duvidoso pra dizer o mínimo.

Caio Fernando Abreu. Imagens: reprodução

Caio Fernando Abreu. Imagens: reprodução

Caio F., como gostava de ser chamado, na verdade tem uma premiada obra com romances, contos e poemas. É vencedor do prêmio Jabuti de literatura nos anos de 1984, 1989 e 1996 (póstumo). Ganhou fama no cenário literário nacional nos anos 1980 com obras como “Morangos Mofados” e “Os Dragões Não Conhecem o Paraíso”.

É dono de um estilo único na escrita quando o assunto é tratar de temas cotidianos. A solidão, o amor urbano, a vida nas grandes cidades, o homoerotismo, o intimismo e tantos outros temas são abordados pelo escritor com uma linguagem poética cercada de referências pop que ao mesmo tempo conseguem transbordar emoção.   

“Sob o Céu de Saigon” é um desses registros que mostra personagens que qualquer um consegue se achar nas características massificadas de um mundo perdido em consumo e desencontros. Os dois protagonistas, vistos pelo observador, se encontram em um momento em frente a um cinema e trocam um breve diálogo.

– Parece Saigon, não?
– O quê? – ele perguntou sem entender.

Ela apontou para cima:

– O céu. O céu parece Saigon.

Surpreso, e meio bobo, ele perguntou:

– E você já esteve em Saigon?
– Nunca – ela sorriu outra vez. – Mas não é preciso. Deve ser bem assim, você não acha?
– O quê? – ele, que era meio lento, tornou a perguntar.
– O céu – ela suspirou. – Parece o céu de Saigon.

Ele sorriu também outra vez. E concordou:

– Sim, é verdade. Parece o céu de Saigon.

A busca por uma comparação dramática para aquela paisagem é, talvez, o que também muitos de nós rabiscamos na mente em dias como esses, em que “o céu está escuro…”, e em que “pode-se imaginar balões juninos, objetos voadores não-identificados, pára-quedistas, helicópteros camuflados, zepelins, ou qualquer outra dessas coisas pouco prováveis de serem encontradas sobrevoando ruas como a Augusta num sábado à tarde”.

"Ovelhas Negras", coletânea de contos considerados "malditos" pelo escritor gaúcho

“Ovelhas Negras”, coletânea de contos considerados “malditos” pelo escritor gaúcho

Estive uma única vez na vida na Augusta, em São Paulo, justamente numa tarde de sábado, no ano de 2014. Porém, para estar como no conto, perdido ou sobrando no mundo, pensando ou caminhando no mesmo sentido ou no sentido oposto ao que quer que seja, não é preciso exatamente um lugar. Esse processo é parte do motor que nos leva nessa vida moderna para destinos tão incertos quanto os rumos dos protagonistas da narrativa.

O nosso céu de Saigon de cada dia pode ser contemplado em fins de tarde de céu alaranjado, diante do Rio Amazonas, talvez. Ou quem sabe ao sair do trabalho no início da noite de uma sexta-feira, a caminho de um bar qualquer.

A vida vai sendo vivida, mas ao mesmo tempo também erguida por dentro com imagens e edificações de sentimentos, reflexões ou qualquer coisa nesse sentido que nos leva para as as ruas do futuro. 

Você pode ler o conto “Sob o céu de Saigon” na íntegra clicando aqui.

 

Foto destaque: Júlio Miragaia (Cidade Velha, Belém-PA)

*Júlio Miragaia (Júlio Ricardo Silva de Araújo) é jornalista.

Seles Nafes
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