Mal chego e um homem com máscara cirúrgica caída sobre o queixo me fala com certa solenidade, enquanto calça as luvas de látex:
– Cara que entra aqui nesta sala é pra sangrar!
Eu, que tenho pavor de ser furado, pensei em dar meia volta. Mas já era tarde, pois ele, com seu longo braço, já alcançara minha nuca e me empurrava com delicadeza sala adentro.
– Não se preocupe, eu sei sangrar um homem muito bem – Disse, indicando a cadeira onde sentar, enquanto ia pegar uma seringa de dentro de um estojo de alumínio sobre a bancada.
Aquele homem me fez pensar nos sacerdotes que viveram na terra bem antes de Cristo e que praticavam o extispício, ou seja, liam o futuro nas entranhas de animais mortos.
Comecei a pensar no que minhas entranhas tinham a dizer sobre o futuro, mas especificamente sobre meu futuro, pois eu havia ido aquele laboratório de análises clínicas para saber se havia alguma coisa errada em mim que pudesse atrapalhar meus planos de médio e longo prazo aqui no plano terrestre.
Fiquei a imaginar os sacerdotes praticantes do extispício, mas não sabia o nome de nenhum. Sei que isso de remover as entranhas dos bichos em busca de pistas de uma leitura possível do futuro foi prática comum em dezenas de países do Oriente Médio, África e Europa séculos antes do surgimento do cristianismo e se estendeu por mais alguns.
Espremendo o corpo como a fechá-lo contra a dor da picada da agulha na veia, lembrei-me das Sibilas, personagens que conheci através dos escritos de Alberto Manguel (uma breve história da leitura). Eram mulheres que falavam pelos deuses da antiguidade em forma de enigmas. Das sibilas minha mente me levou a Julião, personagem título de conto do carioca Anibal Machado, que previu a explosão da bomba atômica.
As sibilas eram imortais, mas não tinham o poder de se manter jovens. Daí se transformarem em seres decrépitos, condição que a função de porta-vozes dos deuses torna mais assustadora, penso eu.
Julião era considerado louco, vivia ensimesmado. A semelhança entre ele e as sibilas é o fato de serem atacados por visões/mensagens e de as anunciarem em altos brados de uma maneira completamente ininteligível para as pessoas comuns.
Na rua, sentido ainda a dor da picada latejando debaixo do band aid colorido colado no braço, voltei a pensar nas sibilas, imaginando como deveriam ser seus grunhidos quando suas cordas vocais eram tocadas pelos deuses. Falavam sem hora nem dia marcado, e o povo que se coçasse para decifrar.
Gente que fala umas coisas que ninguém entende tem por aí aos montes. Uma delas eu encontrei em Laranjal do Jari onde fui a trabalho. Falava umas coisas, que tinham sentido somente no mundo da literatura, ou talvez da mitologia.
Encontrei-a dia desses andando, a passos decididos, sobre a linha imaginária que separa a loucura da profecia. Parou para olhar as vitrines de uma loja de móveis de luxo. Foi quando me viu. Sorriu e falou alguma coisa que não ouvi direito, mas parecia uma profecia.
Manoel do Vale
*Extispício (do latim extispicium) é a prática de usar anomalias nas entranhas do animal para predizer ou adivinhar eventos futuros.1 Órgãos inspecionados incluíam o fígado, os intestinos e ospulmões. O animal usado para extispício frequentemente deveria ser ritualmente puro e abatido em uma cerimônia especial.