ANDRÉ SILVA
É na Polícia Técnica do Amapá (Politec) que vão parar as crianças e adolescentes que sofrem violência sexual no estado. Vítimas na faixa etária entre os 2 e 14 anos são atendidas todos os dias pela psicóloga Denise Moreli. Desde a reativação do atendimento no ano passado (foi suspenso em 2010), 365 crianças já foram atendidas. “As vezes mais de uma por dia passa por aqui”, revela a psicóloga que faz uso da ludoterapia.
A ludoterapia é um tratamento que se vale de jogos divertidos para povoar as angústias dos pacientes com transtornos mentais ou não.
O Site SELESNAFES.COM conversou com a psicóloga que já trabalha há mais de 28 anos no tratamento e recuperação de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no Amapá.
SELESNAES.COM: Como é realizado esse trabalho na Politec?
Denise Moreli: Aqui nós recebemos as vítimas de violência sexual encaminhadas pela Justiça ou delegacia de polícia que solicita o exame de conjunção carnal e ato libidinoso. Quando essas pessoas chegam aqui, e em geral são crianças e adolescentes, nós orientamos, acolhemos. Eu preparo a criança aqui para fazer o exame que é realizado por um médico. É feito o exame visual e a coleta de material.
Quando é criança, nós fazemos o atendimento através da ludoterapia, que é um atendimento onde uso o brinquedo, o jogo. Ela chega aqui e brinca comigo, joga comigo, conversa, e a partir daí é que eu vou colhendo informações e vou prepará-la para o desfecho desse momento horrível da vida dela, que foi ter sofrido essa violência. Depois do jogo ela leva o brinquedo de presente, para ela sair mais acolhida, mais tranquila daqui.
Faz tempo que esse serviço funciona aqui na Politec?
Ele funciona desde março de 2015. Nós estamos vinculados à Rede Abraça-me, que é uma rede de enfrentamento a violência sexual contra a criança e o adolescente.
A senhora é formada em psicologia, mas com especialização em ludoterapia, é isso?
Sim, sou formada há 28 anos em psicologia e especialista em ludoterapia e violência doméstica contra a criança e adolescente. Concluí o curso pela Universidade do Norte de São Paulo e especialização pela Universidade de São Paulo (USP).
Em que estado psicológico as crianças chegam aqui?
A gente tem uma variedade, por que se a criança percebeu que aquilo é uma violência, um constrangimento, ela vem sofrida, com dor, machucada, com alguma marca que não é da própria violência sexual. Então, às vezes, ela chega chorando, assustada, com medo de ser tocada, que é uma reação natural das vítimas da violência. Mas também chegam confusas achando que aquilo (agressão) era carinho, afeto. Que aquele adulto que a tocou inadequadamente, fez um carinho por que ela pode ter sentido prazer. Então ela chega confusa.
Como a senhora faz pra elas contarem tudo que aconteceu?
Ao chegar aqui, a gente estabelece o que chamamos de Rapor, que nada mais é que uma capacidade de nos comunicar para ela ficar à vontade, confiar em mim e me contar tudo que aconteceu para levantamos os dados e saber como tudo aconteceu. Estabelecido o Rapor, a gente faz a hora do jogo, por que brincar é a coisa mais importante para a criança.
A vida da criança é brincar aprendendo. Então no jogo – na brincadeira ou no desenho – ela vai me dando elementos, e eu vou conduzindo as perguntas, vou estabelecendo essa relação para que ela possa me contar. Sempre com cuidado, pois é imprescindível não alimentá-la com memórias falsas. É ela que tem que me contar o que aconteceu.
Não faço nenhuma pergunta direta do tipo: tocou assim? Eu não faço essa pergunta. Eu digo: o que foi que aconteceu, me conta o que aconteceu... depois, o que você acha? Nunca dando pra ela ideias para criar memória falsa.
A senhora atende mais crianças ou adolescentes aqui?
Crianças. Eu já tive vítimas aqui de três anos, e bastante na faixa de onze anos. Elas começam a entrar no período pré-adolescente então começam a aparecer os seios, a perninha, então os homens que são pedófilos começam a olhar essa menina e se sentem atraídos por elas.
Já acorreu de alguma criança inventar uma história? Como foi?
Já. Mais ou menos 10% das crianças contam uma memória falsa, que as vezes o pai inventou e falou para ela contar, ou a mãe. Principalmente quando se tem briga na separação, por bens ou pra ficar com a guarda da criança, alienação parental associada a essa falsa memória. Mas a gente faz essa investigação aqui e eu comunico a justiça e emito um relatório dizendo que é necessário a averiguação, pra saber se aquilo que ela falou é verdade ou se é efeito de uma memória falsa que alguém implantou ou se ela mesma criou para si. Já aconteceu sim.
Cite um exemplo…
Eu tive um caso aqui que a própria mãe suspeitava que a história da criança era falsa. Aí eu pedi para ela me trazer de novo a criança. Ela trouxe mais duas vezes para eu concluir se de fato a memória era falsa. E conclui que era falsa. A conselheira tutelar também tinha percebido, a delegada de polícia também. Ela mesmo criou, ela tinha visto uma propaganda na televisão e criou uma história para ela. Ela já tinha uma característica na personalidade de inventar, de produzir fantasia. Era uma criança de dez anos.
A criança que sofre esse tipo de violência precisa de acompanhamento permanente?
Ela precisa, pelo menos nos primeiros períodos após o evento ou mesmo que tenha acontecido há um tempo atrás, por que os casos são antigos. Hoje mesmo eu atendi uma criança que tem quatorze anos, mas o estupro aconteceu quando ela tinha 7 anos.
O abusador sempre foi abusado na infância, ou podem ocorrer casos de abusadores que tiveram uma infância normal?
É um mito dizer que todo abusador sofreu abuso. Isso não é verdade. Nós temos um número significativo de abusadores que sofreu abuso, mas não são todos. Alguns nunca foram abusados, mas abusam. E tem também algumas pessoas que sofreram o abuso, mas nunca abusaram de ninguém, muito pelo contrário, saem na defesa de quem já foi vítima. Isso é mito.
A criança dá sinais de que está sendo abusada?
Sim. Qualquer alteração no comportamento dela que a mãe ou a professora perceba é importante averiguar. Do tipo: a mãe dava banho, mas agora não quer que toque para lavar, não quer ir mais no colo de quem gostava…. tudo isso pode nos dar um significado. Na escola muda o comportamento, ela era uma criança inquieta e passa a ser uma criança apática ou vice-versa. Passou a ser agressiva, a desenhar partes íntimas, tenta beijar na boca, então essa criança foi vítima de violência sexual.
Qual dica a senhora dá para pais e professores quando identificam um comportamento estranho na criança?
Chamar a família ou responsável, perguntar se aconteceu alguma coisa. Por que esse comportamento pode surgir, por exemplo, do trauma da morte de um animal (doméstico), do nascimento de um irmão, do falecimento do avô, da mudança do vizinho que ele brincava. Então ele pode estar em um momento de perda e não de violência sexual. Então vale a pena chamar a família e perguntar por que está havendo aquele comportamento. Se mesmo depois de descartados esses elementos você ainda suspeitar que aquele comportamento não é normal, vale a pena averiguar se ele não é vítima de negligência, de violência física, psicológica ou sexual.
A pessoa que é abusada quando criança, quando adulta consegue ter uma vida normal?
Se ela receber tratamento psicológico, apoio familiar e orientação, sim, ela consegue ter uma vida normal. É claro que se trata de um evento altamente traumático e quando lembrar ela pode ter um momento de tristeza, mas ela vai ter o ego fortalecido para poder lidar com essa situação, e não colocar em todos os relacionamentos a projeção daquilo que aconteceu. Ela consegue separar. Quando ela não recebe tratamento ela projeta aquele momento ruim em todos os relacionamentos delas. Então todo mundo vai ser ruim, todos querem magoá-la. Não incomum a vítima de violência partir para a promiscuidade, para a prostituição, o uso de drogas. Sempre vale a pena acompanhar e tratar.