O contador de histórias

A arte de quem conta histórias pra ganhar a vida, ou simplesmente o mundo todo
Compartilhamentos

MANOEL DO VALE

O dia 20 de março é reservado a um dos profissionais mais importantes para a formação da mitologia e construção das realidades alternativas nas sociedades humanas. E necessário à formação moral e criativa das pessoas. Esse profissional é o Contador de Histórias, a pessoa que domina uma arte tão antiga quanto a fala humana.

Nesta semana, um contador de história do Amapá bombou nas redes sociais em vídeos e reportagens que o mostram falando de seu trabalho no plenário do Congresso Nacional, e em matéria divulgada em rede nacional pelo Jornal da Record.

O nome dele é Joca Monteiro, tem 34 anos, e mora na Baixada Pará, no Bairro Cidade Nova.

Professor das séries iniciais do ensino fundamental, ator, palhaço, brincante, e pesquisador da encantaria amazônica, Joca se reconhece como contador de histórias da Amazônia. Não apenas por ser do Amapá, mas, sobretudo, por carregar consigo o jeito peculiar dos contadores do meio do mato, como ele se refere aos contadores de histórias da maior floresta tropical do planeta.

Ele se apresenta…

Joca Monteiro

Era uma vez na Avenida Pará, no Bairro do Pacoval, em Macapá, ano de 1988, eu, ainda menino, tinha sete anos de idade. Estava brincando de casinha debaixo do assoalho de casa quando ouvi os assobios do Toco, um amigo de nove anos, um dos primeiros moradores da Baixada Pará. O Toco era muito esperto e trazia a notícia que mudaria a vida de um menino de sete anos para sempre:

– Joca, estão invadindo o outro lado da baixada e teu pai pode fazer uma casa pra vocês morarem lá!

Não tínhamos casa própria, e eu com sete anos já guardava a memória de ter morado em sete casas diferentes. Sendo assim, eu amei a ideia de morar na baixada, perto do meu melhor amigo esperto e no lugar mais lindo do mundo para um menino de sete anos.

JOCA6

Conheci a baixada logo depois de conhecer o Toco, e o Toco era muito esperto e me levou até lá onde pela primeira vez mergulhei em um igarapé; onde pela primeira vez tive contato com a mãe natureza; onde capivaras e araras procriavam, macacos de cheiro passavam aos bandos ao meio dia, galinhas d’águas e piaçocas brincavam de pira esconde no aningal, os japiins deixavam o céu preto e amarelo pela manhã e no final da tarde quando regressavam.

Nesta parte mais bonita da baixada, eu e todos os meninos e meninas, demos ao lugar o nome de Matinha, o lugar mais lindo do mundo de um menino de sete anos e de todos os meninos e meninas dali.

Lá eu aprendi muitas coisas, inclusive o que não se deve. E nadar foi o aprendizado mais incrível, pois todas as vezes que eu mergulhava naquele lago, eu posso jurar que era exatamente como se eu fosse um boto, e posso jurar que um dia, no auge da imaginação de um menino, eu pensei que eu realmente era um boto.

JOCA3

O Toco era muito esperto e trouxe a notícia mal recebida pelos meus pais, pois ninguém queria morar na baixada, mas eu sim, amei a ideia de morar ali, então desobedeci. Toco e eu fomos até a casa da minha avó Milica, que ficava bem pertinho de casa na Avenida Maranhão, no mesmo bairro. Fui até lá para contar a primeira mentira da memória de um menino de sete anos.

Ideia do Toco que era muito esperto. Contei uma história para minha avó. Disse que meu pai iria capinar o quintal de um vizinho e precisava emprestado o terçado e a enxada. Pegamos as ferramentas e descemos para buscar um terreno para minha futura casa na baixada.

Facões, enxadas, foices e a zoada de muitas pessoas capinando, cercando seus terrenos, tudo acontecendo muito rápido, cena de filme. Avistamos um matagal que ficava não muito longe da Matinha e nos danamos a roçar.

Joca participa de sessão na Câmara dos Deputados

Joca participa de sessão na Câmara dos Deputados

O Toco que era muito esperto percebeu que demoraríamos muito para abrir um terreno com as ferramentas, éramos duas crianças competindo com muitos adultos, então o danado teve a ideia de jogar sobre o mato alto uma tábua de madeira que achamos por lá e assim fazer o mato baixar.

Assim fizemos. A tábua no mato, nós sobre a tábua A tábua pesada arriava o mato bravo assim fizemos, sorrindo como duas crianças. Nessa brincadeira abrimos um campo de mais de 60 metros.

O Toco sempre foi muito esperto, tinha fama de ladrãozinho e sua ficha lá no bairro era bem extensa, por isso quando dona Cordola viu o filho da Inês descendo à baixada acompanhado do Toco e levando um terçado na mão, foi correndo contar o que estava acontecendo aos meus pais.

JOCA2

Quando viram o tamanho do terreno ficaram até assustados. Minha mãe me repreendeu com surpresa, pois era a primeira vez que eu aprontava daquele jeito: Tinha que ser neto de Matinta Pereira, mesmo!

Papai nem falou nada. Cuidou de cercar o terreno e assim, graças a coragem e ousadia de um menino de sete anos e seu amigo esperto, nossa família tem até hoje sua casa própria na Baixada Pará.

Nesse lugar eu aprendi muitas coisas, inclusive o que não presta. Mas confesso que roubar foi a coisa feia que eu mais me orgulho de ter aprendido com os meninos da baixada. Já roubei frutos do sítio do Adonias Trajano (ex-deputado estadual já falecido) que ficava ali coladinho com a baixada.

Já roubei verduras da horta do japonês, que para azar do dono ficava bem atrás da Matinha; não posso deixar de falar do pão da panificadora Trovão, do velho Geová. Roubava pão do velho, porque seu Geová não dava nada, nada a ninguém, o homem padeiro gostava era do dinheiro, nunca saía um pãozinho pros meninos que pediam na porta da sua padaria, então o jeito era roubar. O objetivo do roubo era matar a fome dos que eu amava.

Nos primeiros meses de morada na baixada, não havia energia elétrica nas casas e as noites eram iluminadas pelas estrelas, tudo era encanto e foi nesse lugar que iniciei aos sete anos meu caminho pela encantaria das histórias, pois foi lá que ouvi as primeiras histórias do meio do mato, as primeiras histórias da Amazônia.

JOCA

As histórias no meio do mato vinham da boca de vários contadores de histórias. Minha mãe alimentava nossa imaginação todas as noites com visagens, misuras e aventuras sinistras da sua infância.

Dona Inês era para mim e meus dois irmãos a maior contadora de histórias, depois da Avó Benedita sua mãe, é claro. Quando a Avó Benedita chegava do interior, sentava naquela cadeira de macarrão e ao som dos grilos e à luz de vaga-lumes, nos conduzia ao mundo da encantaria amazônica.

–  Vocês ouviram isso?

–  Vó, era uma coruja branca passando

– Era Matinta Pereira, filho! Ela pode se transformar no animal que bem quiser e sair de noite por aí. Vocês não fiquem até tarde na rua, porque eu já vi ela pegando criança do chão e voar pra longe e o menino nunca mais voltou

– Como ela é, vó?

– Não posso contar, isso é segredo e ninguém conta segredo de Matinta. Se quiserem saber como ela é, é fácil. Quando vocês verem ela virada em bicho por aí, é só gritar pra ela vim buscar tabaco que na manhã seguinte vai aparecer uma velha na porta de casa te pedindo café… e tabaco.

Seles Nafes
Compartilhamentos
Insira suas palavras de pesquisa e pressione Enter.
error: Conteúdo Protegido!!