JÚLIO MIRAGAIA, jornalista e editor do Site SELESNAFES.COM
A literatura e o cinema têm importantes obras sobre futuros apocalípticos, onde as relações de poder na sociedade regridem para níveis primitivos. Assisti pela terceira vez neste fim de semana ao filme “Mad Max: Estrada da Fúria”. A história é contada num mundo em que boa parte dos recursos naturais foram esgotados, a água é escassa e uma família detém o controle sobre o líquido essencial à vida e, consequentemente, detém o poder.
Na trama, o grau de alienação da população em relação aos seus governantes é intenso, para dizer o mínimo. O personagem de Nux (interpretado por Nicholas Hoult), por exemplo, em várias cenas professa uma fé pelo ‘rei-deus’ Immortan Joe (Hug Keays-Byrne), acreditando numa vida após a morte na Valhalla (paraíso da mitologia nórdica), com banquetes e virgens à sua espera.
O ‘testemunhem’, bradado por todos os soldados de Immortan Joe antes da morte, dá o tom da cegueira do que restou da humanidade diante da minoria privilegiada que a governa. É uma relação social que mistura religiosidade com convencimento ideológico e político da situação.
Ao longo da trama, uma rebelião é deflagrada a partir da tentativa de fuga da imperatriz Furiosa (Charlize Theron) com um grupo de esposas do governante. Apesar de todas as atrocidades, a emancipação do povo do governo carrasco só se efetiva depois que os rebeldes matam Immortan Joe. A apatia e a aceitação da barbárie permitiam que as relações de poder estivessem estabelecidas da forma mais primitiva e opressiva possível.
A história do filme, para além da ficção, pode servir como metáfora também para o atual modelo político que se desgasta cada dia mais não somente no Brasil, mas no mundo. Digo isso porque se dermos uma boa olhada no cenário internacional também veremos que o descrédito com as formas de democracia existentes expressam sectarismos, extremismos e indiferença com a política e com os políticos.
Trato de forma separada política de políticos aqui para que possamos entender política como uma maneira de intervir na realidade, seja por meio do voto ou fazendo alguma manifestação política; e políticos uso como a expressão que qualifica os profissionais da democracia representativa.
Há descrédito com a política visível porque não há reação coletiva e inconteste da sociedade diante dos grandes acontecimentos. No senso comum, naqueles que são a maioria da população que apoiou o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, recursos de mobilização como a greve ou a organização partidária ou qualquer luta sindical ou popular virou sinônimo de ação esquerdista.
O desgaste também deságua na superestrutura do poder político. A quantidade de votos brancos e nulos no primeiro turno das eleições municipais deste ano também dá a demonstração de que as pessoas não se sentem representadas.
Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro a quantidade de nulos e brancos foi maior que o voto nos candidatos que concorriam ao pleito.
Candidatos à prefeitura que tem tradição nas disputas políticas da capital amapaense e no próprio estado tiveram um pífio desempenho, como é o caso do PSB e do PT, partidos que já governaram Macapá e o Amapá. Merece destaque também nesse caso os expressivos 5% que obteve o candidato do PSTU, Genival Cruz, que canalizou o chamado ‘voto de protesto’.
Apesar do descrédito, há também uma parcela expressiva que está engajada e participando do processo eleitoral por inúmeros motivos. Em todo o país, as campanhas dos candidatos de oposição falam em renovação, embalados pela vontade popular. Alguns candidatos da situação, principalmente os que buscam a reeleição, falam em ‘arrumar a casa e as contas’ e pedem o voto de confiança para o ‘trabalho continuar avançando’.
Como em Mad Max, o ponto de inflexão na realidade sobre a experiência da campanha eleitoral e a experiência com a população não será definido no momento de beber a ‘Aqua-cola’, ou seja, com as obras e os serviços públicos acontecendo durante a eleição, como sempre vemos acontecer. Independente de quem vença a eleição em qualquer das cidades em que ocorre segundo turno, o que dará a tônica das relações entre governantes e governados será a ‘falta de Aqua-cola’.
Se uma ‘Furiosa’ resolver mudar a situação, a popularidade de qualquer novo prefeito, vereador ou partido pode entrar rapidamente em xeque. Assim tem sido nos últimos anos e o cenário não é nada animador para os vitoriosos. É preciso digerir esse paradoxo.
A menos de duas semanas do segundo turno do processo eleitoral deste ano, estamos diante do anúncio e da aplicação de um pacote de austeridade no país que joga para o bolso da população a conta de uma crise econômica. Os serviços públicos vão de mal a pior, basta pensar na crise da saúde, do transporte público e da educação para ter uma ideia.
Materializando isso em nossa cidade, basta pensarmos na obra parada do Hospital Metropolitano há mais de uma década, na falta de creches para atender a demanda, nas escolas assaltadas, na poeira que toma conta da cidade e na passagem de ônibus cara.
A indiferença e a apatia do momento pode também ser apenas a fotografia de um filme que pode contar uma nova história. Entre o que se promete e o que serão os próximos quatro anos há um abismo, no qual ninguém no momento detém a bola de cristal para adivinhar como será. O terceiro turno, o da realidade, pode ser o mais acirrado porque será entre as aspirações da cidade e as promessas não cumpridas. Com a palavra, o futuro.