JÚLIO MIRAGAIA
– O que você quer?
– Não sei.
…
– Você tomará uma decisão, menino. Tenha cuidado, saiba o que realmente quer. Considere todas as consequências, ou acabará com 59 anos se perguntando o que aconteceu.
…
Este é o conselho de um deprimido Ernest Hemingway para seu amigo, o jornalista americano Ed Meyers, numa Havana às vésperas da revolução cubana. Hemingway, escritor também nascido nos EUA e vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 1954, morou na capital cubana por 30 anos, junto com sua esposa, Mary.
O encontro entre o jornalista e o autor de clássicos como o “Velho e o Mar”, “Por Quem os Sinos Dobram” e “Paris é Uma Festa”, é narrado no filme-documentário “Papa”, lançado em dezembro de 2015, no Festival do Novo Cinema Latino Americano. Foi o primeiro longa-metragem americano feito em Cuba desde 1960, sinais do processo da abertura econômica que vem ocorrendo na ilha nos últimos anos.
Enquanto a revolução avançava no fim dos anos 1950, Hemingway lutou contra uma grave depressão. O momento dramático na vida do escritor é contado num roteiro escrito pelo próprio Ed Meyers, que era um fã confesso do amigo.
Jornalista, correspondente de guerra, poeta e romancista, Hemingway foi uma testemunha de grandes acontecimentos do século passado, como as duas guerras mundiais e a Guerra Civil Espanhola.
Também ganhador do Nobel de Literatura, o peruano Mario Vargas Llosa, em artigo publicado no portal El País de outubro de 2015, descreve Hemingway da seguinte forma:
“Sua vida foi intensa, violenta, com a morte sempre rondando, não só nas guerras nas quais esteve como correspondente e combatente, mas também nos esportes que praticava – o boxe, a caça, a pesca em alto-mar –, nas viagens arriscadas, nos desarranjos conjugais, nos prazeres ventrais e nos rios de álcool. Viveu tudo isso e alimentou seus contos, romances e reportagens com essas experiências, de uma maneira tão direta que, pelo menos em seu caso, não há nenhuma dúvida de que sua obra literária é, entre outras coisas, nem mais nem menos do que uma autobiografia mal dissimulada”.
Meyers relata durante o filme a importância que tiveram os livros do escritor em sua vida, atribulada por uma infância órfã, tendo realizado muitos trabalhos braçais e chegando à vida de jornalista já adulto e sem saber escrever direito. Foram as obras de Hemingway, lidas e reescritas manualmente por Meyers, que o levaram a aprender a escrever corretamente o inglês e progredir na carreira, chegando até a condição de correspondente internacional.
Os demais fatos e detalhes da película ficam para quem desejar assistir, para que este texto não se torne apenas uma descrição imprecisa, tentando a precisão. Fico com o trabalho de refletir sobre os conselhos e a troca de relatos entre os dois protagonistas sobre a vida como lugar de passagem, de decisões e consequências.
No diálogo citado no início do texto, Hemingway recomenda considerar todas as consequências diante das decisões que se deve tomar, usando o exemplo de suas inconstâncias amorosas. A chegada impetuosa da idade, a passagem do tempo sem que se perceba, pode fazer com que o arrependimento chegue tarde.
Vamos atravessando os mares dos anos com os pés firmados em decisões que parecem verdades absolutas hoje, mas que amanhã podem ser desfeitas como pó, com nossas revoluções internas na consciência e no coração.
Abaixo, confira o trailer do filme “Papa”.
*Júlio Miragaia (Júlio Ricardo Silva de Araújo) é jornalista.