Por WASHINGTON PICANÇO
Há lutas que ultrapassam o tempo e sempre serão atuais. Um claro exemplo, inspirador, foi o ocorrido no dia 21 de março de 1960, na cidade de Joanesburgo, capital da África do Sul, quando cerca de 20 mil negros protestavam contra a lei do passe que os obrigava a portar cartões de identificação, especificando os locais por onde eles podiam circular.
No Bairro de Shaperville, os manifestantes se depararam com tropas do exército, e mesmo sendo uma manifestação pacífica, os militares atiraram sobre a multidão, matando 69 pessoas e ferindo outras 186.
Este fato histórico ficou conhecido como o “Massacre de Shaperville”. Em memória à tragédia, a ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu 21 de março como o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, influenciando, desde então, o reconhecimento de direitos como uma constância do Estado Brasileiro.
No Amapá, existem cerca 200 comunidades quilombolas identificadas, sendo 47 certificadas junto a Fundação Palmares e outras quatro tituladas através Instituto Nacional de Colonização Reforma Agrária (Incra). É um exemplo da luta permanente pela eliminação da discriminação racial.
A luta pela certificação ocorre conforme as declarações de auto reconhecimento de cada Comunidade, respeitando o decreto nº 4.887/2003 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os povos indígenas e tribais. Esse processo tem sido uma calvário para nossas Comunidades renascentes aqui no Amapá, pois a Certificação de Comunidades remanescentes de quilombos é emitida pela Fundação Cultural Palmares e segue um caminho extensivo e burocrático.
Tal processo teve início no Brasil com a aprovação do decreto nº 4.887/2003, que visava garantir a essas comunidades a posse da terra e o acesso a serviços de saúde, educação e saneamento.
As comunidades quilombolas são grupos com trajetória histórica própria, cuja origem se refere a diferentes situações, a exemplo de doações de terras realizadas a partir da desagregação de monoculturas; compra de terras pelos próprios sujeitos, com o fim do sistema escravista; terras obtidas em troca da prestação de serviços, ou áreas ocupadas no processo de resistência ao sistema escravista. Em todos os casos, o território é a base da reprodução física, social, econômica e cultural da coletividade.
Em 12 de março de 2004, o Programa Brasil Quilombola foi lançado com o objetivo de consolidar os marcos da política de Estado para as áreas quilombolas de todo o país e, exatamente, há 02 anos, 06 Comunidades do Amapá foram, oficialmente, reconhecidas como remanescentes de quilombo com a certificação de auto reconhecimento como uma das vias e formas destes Brasileiros-Amapaense terem acesso às políticas públicas.
Receberam o Auto Reconhecimento as Comunidades de: São Francisco do Matapi, Vila Velha do Cassiporé, Lago do Papagaio, Santo Antônio da Pedreira, Abacate da Pedreira e Rio Pescado. Passado mais de 1 ano do Reconhecimento, o que mudou na vida dos que vivem nestas Comunidades?
Ora, se tal reconhecimento deveria beneficiá-las com melhorias em infraestrutura, acesso às universidades, aumento no recurso para a merenda escolar e saúde, além de acesso aos fundos e financiamentos, esta Certificação que também é o primeiro passo para a regularização fundiária, além de viabilizar a participação de quilombolas em ações públicas dos governos Federal, Estadual e Municipal, no mínimo deveria abrir caminhos e derrubar as barreiras para a superação do abismo das desigualdades existentes.
Indiscutivelmente o acesso à Certificação de uma Comunidade remanescente é uma conquista na luta centenária de seus moradores que vai mais além do que o resgate de sua história, de suas raízes e de suas tradições quilombolas, tal documento deveria, em tese, oportunizar garantias e o acesso a várias políticas públicas.
Neste contexto, imaginemos, a alegria, há 1 ano, do Seu Valter dos Santos, Representante a Vila Velha de Cassiporé, que é uma das comunidades mais antigas do Estado, e da Dona Aureliana Barbosa da Silva, a Tia Sinhá, de 106 anos, que recebeu o Reconhecimento da Comunidade São Francisco do Matapi que hoje já deve ter se transformado em decepção.
Haja vista que, a consolidação destes direitos vão ao encontro de uma outra realidade, pois é triste constatar que ainda hoje, em 2017, o ser humano precisa combater discriminação racial. A intolerância ao diferente existe e é bem real.
Desagradam-me os argumentos de que não existem diferenças, que somos todos iguais e que não precisamos falar mais sobre este assunto. Não! Não somos iguais! Somos diferentes, basta olhar! Mas o que precisamos é enxergar a diferença, aceitá-la e mais do que isso, não usá-la como desculpa para o tratamento diferenciado, para recusas e pior, para a violência tão presente e implacável.
No Brasil, desde 1951, a legislação tenta inibir a discriminação racial. A Constituição Federal de 1988 consolidou esse pensamento, fazendo com que a prática de atos discriminatórios em virtude da raça, o racismo, passasse a ser vista como crime imprescritível e inafiançável, sujeitando o infrator a pena de reclusão.
A lei pode até punir, mas o que educa são os bons exemplos que damos aos nossos filhos e aos demais que conosco convivem. Que as nossas almas estejam desprovidas de todo e qualquer preconceito racial, só assim poderemos mudar o mundo: a partir de nós mesmos.
Que seja este um tempo de reflexão, de mudança e de recomeço. Neste contexto, me associo aos que posicionam-se contra a discriminação racial. Que o nosso Deus criador e criativo, que nos fez com toda essa riqueza e diversidade, nos inspire à mudança no nosso olhar, no nosso pensar e no nosso agir.
Foto de capa: Márcia do Carmo