Por RUBEN BEMERGUY, advogado
É curioso quando você encontra a história em você. A história que não vem dos livros de história. História que você conta pra você porque você sabe a História de memória. História entreolhos, franca. História cúmplice. História-saudade-vida-viva.
Quando em 1953 desaferrolharam as portas do Mercado eu ainda não havia nascido, mas o papai e a mamãe já navegavam naquela tenda cintilante de carne e osso.
Então, íntimos do Mercado, papai e a mamãe me confiaram um segredo que, segundo eles, só poderia ser por mim revelado se o Mercado, as genitálias do Mercado, a epiderme do Mercado, o ar que o Mercado respira, fossem cuidados pela cidade Macapá.
Se o açaí e a bacaba fossem do Mercado sonegados; se sua horta se fizesse infecta; se seus talhos lhe fossem extraídos; se suas roupas não fossem passadas em brasa-carvão; se suas joias não fossem em lustre eternizadas, esse segredo se obrigaria a dormir comigo em abrigo eterno.
Imaginei dias a fio, anos a fio, que esse segredo dormiria comigo em abrigo eterno.
Meu pai e minha mãe, afinal, foram minhas primeiras constatações de autoridade e até hoje o são. Nunca poderia ou posso faltar-lhes com o dever de lealdade absoluta. Segredo é a jura que fiz.
Quantas vezes, para disfarçar nosso segredo, não fui mandado ao Mercado Central fazer mandados? Não tenho a conta. Conta, papai e mamãe tinham nos talhos do Mercado Central.
Dos mandados que cumpri e que não tenho conta, ainda lembro, como se no caminho do Mercado Central estivesse, indo buscar mandioca, vísceras, carne, peixe, chicória, cebola, cebolinha, jerimum e “de um tudo”, enrolado em sacos de cimento vendidos do avesso.
Agora, já resolvido em 58 anos de idade e que volto ao Mercado Central o descubro em luz, amado, majestoso e como houvesse guardado, também em segredo, por tantos anos, a mandioca, as vísceras, a carne, o peixe, a chicória, a cebola, a cebolinha, o jerimum e “de um tudo”, para que outra vez eu as trouxesse enrolados em sacos de cimento vendidos do avesso para casa do papai e da mamãe.
Se o descubro assim sublime e bem cuidado em Caxixi, Ganzá, Agogô de Castanha, Matraca, Maracá e Tambor, posso, então, revelar o segredo que guardei em silenciosa clave musical por tanto tempo.
O segredo se referia ao vizinho de frente do Mercado Central, a Fortaleza de São José de Macapá. Na verdade ao contraste entre o Mercado Central e a Fortaleza de São José de Macapá.
A Fortaleza é uma edificação militar, construída pelo império europeu para proteger império europeu e a Colônia do império europeu.
A Fortaleza, me contou o segredo, tem as pedras suadas do Rio Pedreira – Forte em dor – os indígenas capturados – Forte em dor – os escravos negros comprados – Forte em dor – todas as peças de artilharia – Forte em dor – e ganhou forma em 18 anos – Forte, muito Forte em dor.
A Fortaleza foi, para meu segredo, um Forte guarda dor.
O Mercado Central, ao contrário, me contou o segredo, banhou-se de Amazonas desde o berço. Rezou terço. Deitou o perfume de bruços e aos soluços, em compasso e traço, se fez homem e se fez mulher. Se fez menino e se fez menina. O Mercado Central se faz Macapá.
O Mercado Central, também me contou o segredo, nos fez voar o voo mais límpido e solene voo-urubu e, então, plainamos todos em Tamuatás, Tucunarés, Pirarucus ao leite da mandioca, erva jambu.
O Mercado Central, definiu o segredo, não foi içado Forte ou em dor e, por isso, nos construiu em igualdade e livres no mais absoluto Sabor-Sereno-Macapá.
A existência própria do Mercado Central foi a de devolver ao Rio Pedreira as pedras suadas do Rio Pedreira. Aos indígenas capturados, seus cantos. Aos escravos negros comprados o encanto dos passos livres.
O Mercado Central se fez em nós.
E sem nenhum combate.