Os índios que foram colocados para criar boi no Tumucumaque

Os bois chegaram nas aldeias do norte do Pará e sul do Amapá através de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB).
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Por MARCO ANTÔNIO P. COSTA

Um empreendimento, para ser considerado um sucesso ou um fracasso, tem muitas nuances a serem avaliadas. Se isso já é relativo na nossa cultura ocidental não-indígena, o que dizer, então, se formos comparar com culturas que remetem a povos originários, que construíram secularmente outros signos e formas de avaliar o mundo?

Nas aldeias Tiriyó no Parque do Tumucumaque…

… gados são comuns. Fotos: Acervo Pessoa

Os indígenas da etnia Tiriyó, no Brasil, são uma boa fonte de estudo e análise sobre um fato como este. Quando um avião pousa em suas pistas, em várias aldeias, os agentes do Estado brasileiro, sejam da Funai, do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) ou do Governo do Estado do Amapá, já sentem a presença excêntrica no ambiente: estrume, excremento de boi.

Indígenas da etnia Tiriyó são estudados pela introdução da criação de gado em aldeias

O assunto gera curiosidade, pois não é muito conhecido o exemplo de indígenas que vivem muito isolados, bastante distante das cidades, mas que têm gado em suas terras. Mas a introdução da “pecuária” na cultura indígena existe.

Tudo começou com a tentativa das missões franciscanas de introduzirem a criação de gado por índios na hoje Terra Indígena (TI) Parque do Tumucumaque, localizada nos municípios – mas bem diante das sedes dessas cidades – de Alenquer, Óbidos, Oriximiná e Almeirim, todos no norte do Pará, e Laranjal do Jari, no sul do Amapá.

Agentes de estado quando chegam nas aldeias do Tumucumaque são bem recepcionados e logo sentem o cheiro peculiar do excremento de boi

Os bois chegaram nas aldeias através de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), já que não há estradas e a navegação nos rios da região, o Paru de Oeste e seu afluente, o Rio Marapi, é muito difícil por suas águas caudalosas e inúmeras corredeiras.

Frei Paulo Calixto, um dos pioneiros e entusiastas dessa inserção do gado, falecido recentemente, gostava de contar como ele mesmo e vaqueiros contratados ensinavam os índios a criar os bois para seu próprio consumo e para o aproveitamento dos derivados do leite, como o queijo e a coalhada.

Bois vivem em meio aos índios nas aldeias

“Com efeito, durante as décadas de 1970-90, enquanto o Frei Paulo e confrades estiveram à frente dessas criações e os índios apenas atuavam como ajudantes, a Missão Tiriyó teve êxito com a criação de búfalos e gado branco em seus arredores, onde eram mantidos em seus currais específicos. O gado abatido era vendido no açougue da aldeia para indígenas e militares, já o leite e seus derivados, apenas destinados para os Karaiwa locais (não-indígenas), pois não era suficientemente produzido, e mesmo que fosse, não era muito apreciado pelos moradores indígenas”, explicou Denise Fajardo.

Denise, que tem doutorado em antropologia social pela Universidade de São Paulo, desde o início da década de 1990 estuda os indígenas da região. Sobre este aspecto, falou ao Portal SelesNafes.Com, repassando a maioria das informações e fazendo reflexões antropológicas.

Rio Marapi, que banha várias aldeias no Tumucumaque

Ela conta que no início dos anos 2000, quarenta anos, portanto, após a tentativa de introdução da atividade entre os indígenas, a experiência não vingou como pretendiam seus idealizadores.

Deu certo ou errado?

Como nos referimos no início da reportagem, isto é relativo. Foram poucos os indígenas que se identificaram e se dedicaram à atividade e os próprios freis fizeram a avaliação que o intento não deu certo como eles esperavam.

Muitas das cabeças de gado espalharam-se pela região

Muitas das cabeças de gado espalharam-se pela região e tornaram-se um gado selvagem, de impacto ambiental até agora pouco estudado, afirma Denise.

Amigos dos bois – o caso Urunai

Um suspiro da experiência, na década de 1990, se deu nas aldeias Kuxare e Urunai, à beira do bonito Rio Marapi.

“Para os povos indígenas em geral, e não sendo diferente para os povos do Tumucumaque, e em particular na aldeia Urunai, um animal de criação não é tratado como bem de consumo, mas sim como um filho, a quem se dá nome, cuida e nutre. Esse animal pode ser vendido ou doado, até oferecido como alimentação a outrem, mas jamais consumido pelo próprio dono” relatou Fajardo.

Na aldeia Urunai a criação tem muitas peculiaridades…

… quem vive em currais são os indígenas, que fizeram essas proteções porque os bois comem tudo

Na aldeia Urunai a criação tem muitas peculiaridades, as vacas e bois têm nomes e quem vive em currais são os indígenas, que fizeram essas proteções porque os bois comem tudo. Não se pode deixar nada para fora, uma peça de roupa, por exemplo, que os ruminantes tentam mastigar. O que faz Denise questionar:

“Ali quem será dono de quem? As pessoas donas do gado ou o gado dono das pessoas?”

O certo é que ainda há centenas em algumas das aldeias da região e certamente outras tantas espalhadas pela selva. Os indígenas seguem a criação do seu jeito e o próprio conceito de sucesso perde algum sentido. Em dias de festa, em ocasiões especiais, eles oferecem uma cabeça de gado aos visitantes.

“Enquanto donos do gado ali existente, nãos lhes cabe apenas dominar, controlar, abater e consumir suas criações, mas zelar e serem zelados por elas, com generosidade”, concluiu Denise.

Seles Nafes
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