Por MARCO ANTÔNIO P. COSTA
Clevelândia do Norte é hoje distrito do município de Oiapoque, distante 590 quilômetros da capital. O primeiro pedaço de terra do Brasil no extremo norte do país guarda um capítulo importante da história, sendo até hoje objeto de estudos, pelas dores e histórias que passaram por ali. O “Inferno verde”, como muitos apelidaram Clevelândia, recebe até várias comparações com campos de concentração.
Na década de 1920, ainda no período da República Velha, o governo de Arthur Bernardes foi marcado pela brutal repressão aos movimentos nascentes do “Brasil moderno”, que se expressavam nas artes, na cultura e também nas lutas sindicais de trabalhadores brasileiros influenciados por imigrantes, especialmente italianos e majoritariamente alinhados com o pensamento anarquista.
O chamado “anarco-sindicalismo” foi um setor protagonista a lutar por vários direitos que as classes trabalhadoras têm hoje consagradas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Neste contexto, o governo do presidente mineiro Arthur Bernardes (1922-1926) foi marcado por crises.
Por um lado, a baixa oficialidade, os tenentistas, agitaram-se em alguns estados, e por outro, os sindicalistas. Para Arthur Bernardes não importava, o conjunto da oposição era tratado com dureza, e ele chegou a bombardear a cidade de São Paulo em 1924. O Estado de Sítio durou quase todo o seu governo, então, as liberdades democráticas eram minguadas.
Os opositores tinham que ser enviados para um lugar inóspito, onde não tivessem condições de se comunicar e caíssem no esquecimento dos anos. A eles se juntaram também ladrões, cafetões e todos que eram considerados “impróprios” – expressão usada à época, simular a “subversivo”, termo que seria usado pela ditadura militar décadas mais tarde.
Clevelândia foi o lugar escolhido e ali se montou uma colônia penal. A viagem era feita de navio, e depois a pé, em seguida de canoas, ou como a maré permitisse até chegar naquele local de mata virgem. Registros dão conta de que a primeira viagem teria ocorrido em 1924.
Crueldade, tortura e morte
Paulo Sérgio Pinheiro, no relatório “Viagem ao núcleo colonial Cleveland”, registrou que de 946 impróprios que foram para Clevelândia, entre 1924 e 1926, 491 morreram. Outros, pelo menos 200, conseguiram fugir via Guiana Francesa, de onde puderam comunicar-se com seus familiares, amigos ou companheiros de grupos políticos.
O anarquista Domingos Passos, ainda em português arcaico, relatou em artigo do jornal paulista “A Plebe”:
“É com imenso júbilo que tomo a pena para rabiscar estas linhas, nas quais vai todo o entusiasmo do militante combatido, perseguido, mas não vencido Oh! camaradas! Não podeis, jamais, avaliar o sofrimento que se experimenta quando atirados para as mais inóspitas regiões do globo, em luta com as intempéries, sofrendo espancamentos e infâmias de toda espécie destes animais a quem chamamos nossos irmãos – inconscientes e ambiciosos – não temos a dita de ouvir palavras confortadoras de entusiasmo que venham, de longe, embora, trazer-nos a certeza de que o nosso ideal continua de pé, impávido desafiando as cóleras dos deuses da terra, exploradores da inconsciência humana”.
Outro, um operário pedreiro da cidade de Petrópolis (RJ), preso sob a acusação de ser “revolucionário”, falou sobre a viagem de volta:
“A viagem foi a pior possível. Basta dizer que o “Manáos”, que possui 16 camas na 3ª classe, trouxe 280 passageiros. Dos 72 vindos do Oiapoque quase todos estavam impaludados, alguns atacados de disenteria, outros de gripe, pneumonia e de outras enfermidades. A comida nunca chegou para todos. Muitos passaram três e mais dias sem comer. De Pernambuco para cá, eu também fui atacado pela gripe. Todas as noites, até a chegada, tive febre e depois de desembarcar comecei a sofrer horrivelmente dos intestinos“, contou em carta João Baptista de Araújo, também em artigo do jornal A Plebe.
Com o fim do governo Arthur Bernardes a colônia durou pouco. As sequelas, porém, ficaram em todos os sobreviventes da aventura macabra. Hoje, Clevelândia do Norte orgulha-se de ser o lugar “onde começa o Brasil”, e trilhou outro caminho: a vigilância da nossa soberania.
Alexandre Samis, que escreveu um importante livro sobre o tema, resumiu:
“O confinamento de anarquistas, soldados, imigrantes, menores e outros ‘desclassificados’, na Colônia Penal de Clevelândia do Norte, no Oiapoque, entre 1924 e 1926, deverá servir como um ponto chave dos mecanismos de repressão”, apontou Samis no livro “Clevelândia do Norte. Anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil”.