Por ADILSON GARCIA, advogado, doutor em direito pela USP e ex-promotor de justiça
Decididamente eu não posso jogar bingo. Sou muito pé-quente e toda vez que eu jogo, eu ganho e lá vem problema! Certa feita, eu estava jogando futebol society na Associação dos Magistrados, dando mais uma costumeira peia no time dos juízes. Logo depois do jogo, o desembargador João Lages. que à época presidia o tribunal do júri e eu era promotor lá, me ‘vendeu’ fiado algumas cartelas do bingo beneficente da Amaap, se livrando do ônus de pagar tudo, porque nas nossas associações é a lei do cão: te empurram 50 cartelas e se você não vender paga do bolso (kkk).
Detalhe: até hoje não paguei o dr. Lages. Mas eu sou do tipo devo, não nego, pago quando puder! Rss!
Como eu disse, sou pé-quente! Bingo! Bati a cartela rapidamente e o prêmio era um búfalo! Isso mesmo! Um búfalo. O presidente da Amaap era o diligente juiz Reginaldo Andrade. Este veio até mim e falou:
– Pode levar seu búfalo. Tá bem ali, óó, apontando com o dedo. Leva logo porque está me dando problemas…
Olhei e lá estava o búfalo de umas 30 arrobas amarrado numa árvore da florestinha atrás da maloca. Fui até meu bichinho de estimação e ele me recepcionou com umas bufadas, riscou nervoso o chão com as patas. Com cara de poucos amigos me mostrou o par de chifres afiados e vigorosos. Ainda bem que a corda era forte! E agora, Pinguim?
Bem, eu havia feito algumas vistorias no Frigorífico Braga de Santana e por isso conhecia o Paulo Braga, dono do matadouro. Liguei para ele e ele mandou procurar um tal de PC Farias, um dos maiores marchantes da praça, para pegar o búfalo.
Quando cheguei lá no açougue do PC, fiquei assustado. O PC era cagado e cuspido a cara do PC Farias e por isso fazia jus ao apelido. Mas eu achei que era mesmo o tesoureiro da campanha do caçador de marajás, o Collor de Melo. E na minha precipitada conclusão o PC Farias estava mesmo escondido aqui no Amapá como marchante.
PC Farias me explicou que em uma viagem de negócios, quando o verdadeiro PC Farias era foragido da justiça, foi detido no aeroporto. Um policial federal olhou para o outro e disse:
-Pegamos o cara! Vamos ficar famosos.
Não adiantou muito o PC falar que não era o PC Farias. Mostrou talão de cheques, RG, CPF, certidão de batismo etc. etc. e nada de convencer os federais.
-Você pensa que nos engana? Sua casa caiu, malandro! Bora, mão na parede!
Depois de umas 6 horas detido no cubículo da PF e perder o voo por óbvio, finalmente o PC tucuju foi salvo graças ao método Bertillon, nome dado em homenagem ao criminologista francês Alphonse Bertillon, fundador do primeiro laboratório de identificação criminal baseada nas medidas do corpo humano e criador da antropometria judicial — ou “sistema Bertillon”. Depois o croata-argentino Juan Vucetich desenvolveu, em 1892 o sistema de impressões digitais (datiloscópico), hoje nominado no meio forense pericial como papiloscopia.
Explico: as papilas dérmicas são saliências presentes na camada dérmica da pele e as impressões digitais resultam dessas saliências, formando linhas e ângulos únicos em cada ser humano. Por isso, essa técnica de identificação se consagrou mundialmente.
Em resumo, o suposto PC Farias “tocou piano” e foi devidamente identificado. Pousou para fotos com os federais afoitos de prender o PC Farias fujão e embarcou aliviado.
Eu havia sido promotor de justiça da infância em Santana e dava apoio à Casa da Hospitalidade, que atende crianças órfãs, portadoras de deficiência, vítimas de violência dos pais e da sociedade e via o sofrimento e a dificuldade financeira das irmãs em manter aquela obra beneficente. Por isso, doei o búfalo para as irmãs, informando que já seria entregue abatido e devidamente cortado, pronto para o consumo.
Pensei que havia me livrado do búfalo, mas as freiras recusaram porque não comiam aquele “bicho preto e feio, coisa do cão” (rsss). Talvez por superstição ou por falta de costume lá na Itália. Mero preconceito porque a carne bubalina é menos gordurosa e mais saudável. O Braga e o PC trocaram a carne do búfalo por carne de “boi branco” (nelore) e a criançada e as freiras da Casa da Hospitalidade se refestelaram de tanto comer carne (rsss).
Mas o que essa história tem a ver com o Ataliba, o carneiro? Calma! Eu chego lá.
Há muitos anos, o procurador-geral de Pedra Branca do Amapari (170 km de Macapá), Dr. Alexandre Battaglin, me convidou para passar um final de semana naquele município para prestigiar o arraial da escola Municipal São Pedro. Chegamos lá, tinha um bingo e o prêmio era um carneiro. Bem, eu avisei para a macacada: olha eu não posso jogar bingo porque eu ganho, sou pé-quente! Duvidaram e literalmente pagaram pra ver.
Na primeira rodada, bingo! Ganhei o carneiro. Putz, comentei consigo mesmo: lá vem confusão! Lembrei-me de um episódio quando eu era promotor de justiça na Comarca de Mazagão. Um amigo nosso, comandante Clécio do Corpo de Bombeiros, criava carneiros numa chácara na cidade. Um belo dia alguém deixou o portão aberto e a cabritada foi dar um rolê pela cidade.
No meio dos cabritos e ovelhas tinha um carneiro brabo, chamado Tufão. A primeira ciclista que Tufão avistou, deu-lhe uma cabeçada que voou até o selim da bicicleta e quebrou o punho da pobre senhora, uma famosa artesã de Mazagão, que ficou meses sem poder trabalhar. Resultado: o juiz Saloé sapecou-lhe uma condenação de R$ 17 mil sem apelo!
O Comandante, furioso com o carneiro Tufão, queria dá-lo a mim de presente (de grego rss) e eu:
-Nã-na-nina-não! Tedoidé? (Kkkk).
O carneiro que eu ganhei no bingo era bem gordo, vistoso e sua lã bicolor preta e branca alumiava. Por isso, eu e o dr. Alexandre, ambos corintianos roxos, o batizamos de Ataliba, que era um jogador negro de pele lustrosa que jogou no Corinthians e fez sucesso. Uma homenagem singela. E tivemos que levar o carneiro pra casa. Confesso que foi bem mais fácil que levar o búfalo, porque Ataliba era mais manso que cordeirinho de fotógrafo. Mas também confesso que as intenções nossas com o Ataliba não era a das melhores: carneiro assado ao vinho com molho de alecrim e hortelã… rsss.
Pobre Ataliba, mal podia imaginar seu destino cruel nas mãos daqueles humanos carnívoros vorazes! Como eu estava de veículo de passeio, não deu para trazer Ataliba para minha casa em Macapá. Por isso, deixei-o sob a custódia do amigo em Pedra Branca do Amapari, com o compromisso de ser convidado para o churrasco!
Inicialmente, Ataliba ficava preso no quintal da casa, logo depois foi conquistando a confiança do anfitrião e foi solto, andava livremente pela pacata cidade de Pedra Branca do Amapari. De manhã acompanhava o doutor até a padaria do irmão Benjamim, que era o juiz de paz da cidade, para ganhar um pedaço de pão.
E quando chegavam em frente à padaria, ele empurrava o doutor para o balcão dando leves cabeçadas na sua bunda para pegar logo o alimento divino. Ataliba era louco por pão. Capim que era bom e de graça ele não queria! Certamente para não ter o trabalho de ruminar, só queria comida de gente! Besta velho, não? Rsss.
Durante o dia o Ataliba passeava pela cidade. Ia à prefeitura escutar as fofocas políticas embaixo do jambeiro. Depois ia à pracinha ao lado do hospital, onde se fartava de brincar com as crianças, que colocavam a mão com o punho cerrado e ele enfrentava dando cabeçadas suaves.
Ataliba era a alegria da praça. Todos o conheciam e ficou famoso, fazendo parte do folclore de Pedra Branca do Amapari. À noite, Ataliba ia para o bar do “Seu” Batista, famoso e único ponto de encontro noturno na época, onde lhe serviam cerveja em uma lata de goiabada. Toda noite os bebuns amigos de copo e de cruz o esperavam, sendo uma atração à parte no local o “Carneiro do Doutor”.
Nas férias, o doutor Alexandre viajou para sua bela Dourados-MS, quando eu recebi uma ligação dele informando que Ataliba estava detido no Batalhão da PM.
Vish! Imaginei: lá vem encrenca!
Ataliba foi preso porque deu uma cabeçada violenta numa ciclista. A cidadã pegou uma queda e se ralou e a bicicleta ficou toda torta. Vai ver o “fidumaegua” era parente do carneiro Tufão de Mazagão e não podia ver bicicleta na frente. Ou seja, é a hereditariedade prevalecendo com um gene recessivo (defeituoso)! Rss.
Bem, como o doutor e eu estávamos longe da cena do crime (distrito da culpa), o sargento da PM disse que manteria o Ataliba preso até o julgamento, pois havia o flagrante!
Comentei com o doutor:
-Bora entrar com um “Habeas Caprinae”! Rsss.
Quando retornamos, após o contraditório e ampla defesa, Ataliba foi sentenciado!
A pena: virar churrasco, buchada de bode e se eternizar nas lembranças de todos os Amaparienses.
Mas a pena nunca foi executada porque Ataliba era um “bon vivant” e amado por todos da cidade. Foi um clamor público! Levamos Ataliba para a fazenda de um amigo, onde ele se diverte até hoje brincando de médico com as ovelhas e faz a alegria da gurizada filhos dos agricultores e trabalhadores, correndo atrás deles nas brincadeiras de pique, comendo pão, se esfregando e lambendo-os.
E ninguém tosqueia nem tasca o Ataliba, porque ele é um bom companheiro, ninguém pode negar!
Moral da história: se quiseres comer alguém, não faças muita amizade! (Mas ninguém come inimigo, não é? Rss).