Por MARCO ANTÔNIO P. COSTA
Seu pai saía de casa todos os dias por volta de cinco da manhã, de bicicleta e com enxada nas costas. Quando os insaciáveis ponteiros do relógio imaginário marcavam 11h e não aparecia nenhum bico, um quintal para capinar, por exemplo, era a senha: rumar para o lixão no quilômetro 17 da BR-210. A carne esverdeada e, obviamente, estragada, era escaldada e frita tantas vezes quanto pudessem achar que já estava própria para o consumo.
Assim foi, por muitos anos, a vida de Efrain Nazaré do Nascimento, de 39 anos, hoje major da Polícia Militar do Amapá. Atualmente é coordenador do Gabinete de Gestão Integrada da Secretaria de Segurança e Justiça Pública do Amapá (Sejusp).
Mas se engana quem pensar que ele olha sua trajetória e a reviravolta na sua história de vida apenas de uma forma a valorizar unicamente o empenho pessoal. Ele solicitou a não utilização da palavra mérito: “sou um milagre da exceção”, afirmou.
Admite que, embora seu empenho pessoal tenha sido fundamental, não considera justo cobrar essa responsabilidade de cada garoto e garota que vive em situação de extrema vulnerabilidade como ele viveu.
“Não basta ter força de vontade e esforço pessoal, a lógica sempre vai tender para que a pessoa permaneça no ciclo e meio de miséria de onde veio”, argumenta.
A pobreza
Efrain era pobre. Uma pobreza extrema, condição tecnicamente encarada como de miserabilidade. Ele veio com seus pais e irmãos de Belém (PA), para tentarem a vida.
Chegou aqui, depois de vir um irmão por vez, no ano de 1994. Estudou nas Escolas Estaduais Cecília Pinto e Mário Quirino, e no antigo IETA – onde hoje funciona a Universidade do Estado do Amapá (Uaep).
Eles moravam em uma área de pontes do Bairro do Muca, zona sul de Macapá. Não possuíam um móvel sequer que fosse comprado, tudo era feito de restos de entulhos que encontravam nas ruas. Ele, que mede 1,80 m, pesava 50 kg, era, portanto, subnutrido. Por mais de uma vez, desmaiou na escola porque não tinha comido, segundo conta.
Efrain conta que tinha uma calça tão velha e remendada, que havia um buraco de mais de um palmo em um dos lados. Passou o ensino médio utilizando um sapato de cada banda. Ia do Muca para a escola em uma bicicleta, igualmente montada de restos, que a cada dois quarteirões caía a corrente.
A história do seu pai catando comida para alimentar os filhos é das mais tocantes. Lembra bastante os versos de Paulinho da Viola em ‘Pode guardar as panelas’, que descreve o homem que sai em busca da comida do dia, não consegue e anuncia: “Dizer que o pior aconteceu / Pode guardar as panelas Que hoje o dinheiro não deu”.
“Quando o meu pai não conseguia bico nenhum, ele ia na lixeira pública e enchia uma saca de sarrapilheira com o que dava para aproveitar e trazia carne já esverdeada, chegava em casa e escaldava, fritava o máximo que entendesse que matasse as bactérias que tinha ali e era com aquilo que nós alimentávamos. Por volta das 14 horas, ele chegava e era a hora que a gente comia. Ficamos uns 3 anos vivendo da lixeira pública”, contou o major.
A virada
Com a ajuda de amigos e professores, ele conseguiu passar em um vestibular para Enfermagem, mas queria mesmo era o Curso de Direito. Entrou em uma faculdade particular e cursou um ano, mas não conseguiu pagar.
Com a ajuda da mãe de um amigo, conseguiu um estágio no Ministério Público do Amapá e, em 2004, passou para o concurso da Polícia Militar do Amapá. Soldado, logo mirou o concurso de oficial, que conseguiu aprovação também e hoje é major da PM e quadro da Sejusp.
“Eu nem sei explicar como que eu estou aqui, porque é muito difícil você escapar desse ciclo de miséria. Eu considero que sou um milagre da exceção, é assim que eu avalio a minha trajetória. Ajudado por quatro forças: primeiramente Deus, segundo por muito esforço pessoal, meu pai, que sempre foi um grande incentivador e os meus professores, eu sou muito grato a todos eles, eu até emociono a me falar”, chorou, ao contar, Efrain.
Quando recebeu seu primeiro salário, queria realizar um desejo: comer, pela primeira vez sozinho, um iogurte da marca Danoninho – um ‘luxo’ a que não tinha condições em outros tempos. Outros primeiros desejos foram beber água em casa em um copo que fosse comprado ou comer em um prato que não tivesse sido achado no lixo.
A vaidade, porém, não cegou o olhar crítico que Efrain tem em relação à pobreza e suas causas e consequências sociais. O caminho mais fácil, talvez, fosse apenas contar seus próprios feitos, mas ele prefere investigar, ter um olhar sobre essas crianças que estão para além das margens das periferias e que o Estado brasileiro teima em não lhes chegar.
“Eu não gosto de falar em centro e periferia social, porque existe uma fração gigantesca de pessoas, como eu estive, que não vive nem nessa periferia. Isso cria uma falsa noção dessas pessoas. Quem está na periferia ainda tem uma chance de chegar no centro. Nesse auxílio emergencial, por exemplo, se descobriu pessoas no Brasil como eu era”, declarou Efrain.
Ele fala com satisfação que, hoje, seus pais alimentam-se com dignidade. Os móveis são comprados, ainda há dificuldades, mas a vida mudou.
Efrain ainda não parou. Formado em Direito, ele ainda visa, quem sabe, uma carreira na magistratura, não por status ou remuneração, mas por enxergar uma possibilidade maior de ser efetivo instrumento de mudança na vida de crianças como ele foi um dia.