Eleições proporcionais: a era dos partidos e deputados classes A e B

Entenda sobre os 2 filtros matemáticos usados para preenchimentos das vagas de deputado estadual e federal
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Por VLADIMIR BELMINO, advogado especialista em Direito Eleitoral

Nestas eleições, iremos experimentar uma maneira de preencher as vagas proporcionais (deputados estaduais e federais) de maneira diferente de todas as outras que conhecemos até aqui. Temos um duplo filtro nas duas rodadas iniciais de preenchimento dessas vagas. Na primeira, pelo quociente eleitoral (QE), no qual o partido/federação (partido) precisa atingir 100% do QE e seus candidatos um mínimo de 10% deste QE; e na segunda, pela sobra, na qual o partido precisa atingir 80% do QE e seus candidatos 20% deste QE (Lei 4.737/65 — Código Eleitoral).

São muitas as dúvidas que surgem, e eis as principais e urgentes a serem discutidas. Antes, porém, vejamos o arcabouço legal que rege o preenchimento dessas vagas proporcionais, com destaques:

Lei 4.737/65 – Código Eleitoral
“Art. 108. Estarão eleitos, entre os candidatos registrados por um partido que tenham obtido votos em número igual ou superior a 10% (dez por cento) do quociente eleitoral, tantos quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido.”
“Art. 109. Os lugares não preenchidos com a aplicação dos quocientes partidários e em razão da exigência de votação nominal mínima a que se refere o art. 108 serão distribuídos de acordo com as seguintes regras:

§ 2º Poderão concorrer à distribuição dos lugares todos os partidos que participaram do pleito, desde que tenham obtido pelo menos 80% (oitenta por cento) do quociente eleitoral, e os candidatos que tenham obtido votos em número igual ou superior a 20% (vinte por cento) desse quociente.”

Resolução TSE 23.677/2021
“Art. 8º Nas eleições proporcionais, estarão eleitos(as), entre os(as) registrados(as) por partido político ou federação de partidos, as candidatas e os candidatos que tenham obtido votos em número igual ou superior a 10% (dez por cento) do quociente eleitoral, tantos quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um(a) tenha recebido.”
“Art. 11. As vagas não preenchidas com a aplicação do quociente partidário e a exigência de votação nominal mínima, a que se refere o art. 8º desta Resolução, serão distribuídas pelo cálculo da média, entre todos os partidos políticos e as federações que participam do pleito, desde que tenham obtido 80% (oitenta por cento) do quociente eleitoral.

§ 2º Ao partido político ou federação que apresentar a maior média cabe uma das vagas a preencher, desde que tenha candidata ou candidato que atenda à exigência de votação nominal mínima de 20% do quociente eleitoral.”

De plano, já se verifica substancial diferença entre o texto legal e o da resolução emitida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para regulamentar as eleições deste ano. Enquanto o Código Eleitoral, em seu português, dita que os 20% da segunda rodada (sobras) devem ser calculados sobre o 80% do QE, a Resolução TSE 23.677/21 indica que se trata dos 20% do QE tido por inteiro, mudando a redação de “desse quociente” para “do quociente eleitoral”. E isso é só o princípio.

Vladimir Belmino: partido que atingir os 100% do quociente disputará da sobras

Importa destacar que o espírito declarado da mudança legislativa era diminuir o acesso de partidos aos mandatos e prestigiar a governabilidade, ao mesmo tempo em que se diminui os partidos com acesso às verbas públicas ao longo do tempo. Conforme observado por Roberta Gresta em debate sobre o tema, “criou-se um pedágio majorado, aspecto esclarecido pela deputada federal Margareth Coelho (PP/PI) em audiência pública”.

Há de se ressalvar, de maneira mais incisiva, que a lei prevê — e a resolução também — que o partido que atingir os 100% do QE participa da disputa da sobra, aquela dos 80%, devendo ser considerados os votos remanescentes da distribuição após o primeiro preenchimento (artigo 11, § 5°, da Resolução TSE 23.667/21). Eis aqui algo que incomoda e deve ser objeto de disputas judiciais pós eleições, gerando instabilidade aos mandatos distribuídos, se não previamente dirimido pelo TSE.

Num entendimento rápido, os 20% do QE se aplicariam a todos os candidatos das sobras, o que em síntese, ficaria nesse esquema apresentado por Roberta Gresta:

“- Participa da distribuição das sobras partidos com 100% do QE e, ao menos, 80% do QE.
– Calcula-se maior média.
– Partido com maior média fica com a cadeira se tiver candidato com 20% do QE. Caso contrário, não fica.”

Observe-se que o partido que obteve 100% do QE, retorna para disputar as sobras nos 80% do QE; mas ele já elegeu os candidatos na primeira rodada com 10% do QE. Agora, dentro do mesmo partido que tem os 100% do QE, seus candidatos remanescentes precisam de 20% dos 80% (na letra do Código Eleitoral) ou de 20% do QE (na letra da Resolução).

Ou seja, temos um partido que manteve seus 100% de QE, somente disputando a sobras, mas neste partido temos o candidato classe A e o candidato classe B. Ora, o partido continuou a preencher o requisito dos 100% do QE e continua a concorrer com seu saldo de votos (artigo 11, § 5°, da Resolução TSE 23.667/21). Assim, nem o partido e nem seus candidatos poderiam sofrer diferenciação competitiva ante os partidos que não atingiram os 100%.

Sendo certo que o objetivo declarado da lei e sua nova sistemática é diminuir o acesso de partidos, portanto concentrar as vagas, a melhor aplicação da lei é de, mantendo a letra da resolução, impor aos candidatos dos partidos que conseguiram os 80% do QE que acessem as vagas se obtiverem os 20% sobre o QE total (100%).

Por outro lado, igualmente é correto garantir a continuidade de distribuição aos candidatos que tenham os 10% do QE nos partidos que haviam obtido os 100% do QE. De outra feita, é ignorar que os partidos conseguiram e continuaram a ter os 100% do QE (não sumiram 20% do QE por mágica, os votos estão lá!); bem como é de boa técnica e rasa lógica impedir a existência de duas classes de candidatos no mesmo partido, o que pode, inclusive, ter outros complicados desdobramentos, dentre eles o acesso às suplências.

O que se aparenta fora dessa lógica de distribuição de cadeiras é ilegalidade, uma vez que poderá haver candidato classe A e classe B na mesma legenda. Por exemplo, o partido A faz QE para uma cadeira, mas tem cinco candidatos com mais de 10%. Na segunda fase, como fez 100% do QE, participa das sobras, mas agora aqueles mesmos candidatos, nessa mesma legenda, concorrem com 20%; ou seja, no mesmo grupo, dois tipos diferentes, duas qualidades para o mesmo grupo por decorrência de equivocada interpretação quando à distribuição das sobras das cadeiras.

A ideia da nova redação e aplicação da nova sistemática não é excluir por excluir; é, de outro giro, exigir que o partido demonstre aptidão para chegar e exercer o poder, por sua votação geral e, em especial, por seus candidatos.

Dada a celeridade da aprovação do novo método de cálculo da segunda rodada, mas para evitar excesso de demandas pelos disputantes dos mandatos proporcionais, bem como propiciar desde o dia seguinte da apuração tranquilidade quanto à correta distribuição das vagas, convém o TSE elabore o algoritmo de cálculo do resultado das eleições levando em conta o espírito da criação da lei e igualdade entre os contendores, em especial sem ignorar a realidade de que o partido que obteve os 100% de QE na primeira rodada é o mesmo que vai para a segunda rodada, mas não é igual ao que obteve 80%. Da mesma forma, deve prestigiar a igualdade de disputa intrapartidária, evitando a interferência modificativa que pode levar a duas classes de candidatos dentro do mesmo partido.

E veja, após todas essas pertinentes dúvidas interpretativas, ainda resta a discussão das suplências, que deixa de merecer linhas enquanto não resolvidas estas urgentes inconsistências. Assim, já com a cena política tumultuada pelos desencontros entre Executivo e parte do Judiciário, será de bom alvitre evitar mais essa desnecessária procela eleitoral.

Vladimir Belmino é advogado, membro fundador e conselheiro de contas da Abradep e assessor legislativo no Senado Federal.

Seles Nafes
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