Vício: ‘pior é quando a família deixa de acreditar’, diz alcoólico anônimo

Integrante conta história e revela que número de mulheres buscando ajuda cresceu no AA
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Por ANDRÉ SILVA

Com 43 anos de existência só no Amapá, e com pouco mais de 20 grupos abertos na maioria dos municípios, o Alcoólicos Anônimos (AA) se apresenta como uma alternativa para quem quer parar de beber. O segredo para seguir firme, lembram os membros da irmandade, é evitar o primeiro gole, só “por hoje”.

Durante o início da pandemia de covid-19, em 2020, o número de mulheres que procuraram ajuda nas reuniões online aumentou significativamente, segundo Rodrigues (pseudônimo), um dos integrantes operacionais do AA. A entidade não faz estatísticas, o aumento foi visível.

“Foi impressionante. Nós tivemos um evento interno na cidade de Mazagão, onde pela primeira vez nesses 43 anos, a maioria do público foi feminino”, lembrou Rodrigues.

“Ninguém pode dizer que a pandemia causou isso, mas pelo menos podemos dizer que vieram a ter mais problemas internamente, as mulheres. Então, como nossos grupos fecharam e ficaram por um período sem funcionar por causa da lei que fechou as instituições, nós abrimos reuniões online. Nessas reuniões é que elas começaram a aparecer. Então, hoje a gente pode dizer que existem bastante mulheres participando presencialmente”, revelou.

Atualmente existem 20 grupos ativos no Amapá

Entrevista

Há 30 anos sóbrio, Rodrigues também contou um pouco da sua trajetória até chegar ao AA e explicou que a determinação e a “fé no Deus santíssimo” são fundamentais para quem quer alcançar a mudança.

Qual o método usado pelo AA?

Ele trabalha na visão de experiência de todos, de cada pessoa, e a gente vai se identificando. Porque é muito complexo, porque tem gente que chega no AA com 15, 20 anos. Tem pessoas que chegam com um nível social muito bom, com carro na garagem, emprego… Então, é muito complexo a gente apontar. O AA é um método de tratamento, ou seja, ele não aponta quem é doente. O método é espiritual, não é religioso. Nele existem católicos, crentes, ex-crentes, ateus, pessoas sem religião nenhuma, ou seja, o AA trabalha com um conceito que a espiritualidade é fundamental para esse processo. Existem outros métodos que nos conhecemos como os CAPS, centro terapêuticos, e que têm seus métodos científicos com profissionais. Nós descobrimos que qualquer pessoa pode parar de beber, mas qual a dificuldade? É permanecer (sem beber). Então, como o AA me ensinou a continuar sóbrio? Primeiro ele me fez entender que a doença não está no álcool, está em mim. A gente pensa assim: o álcool causa o alcoolismo. Eu pensava dessa forma. Eu aprendi que o que me leva a beber é o meu emocional. São as minhas dificuldades de relacionamento, meu temperamento… então, o que o programa vem trazer – através desse processo espiritual de 12 passos – ele me ensina a buscar um autocontrole, a reconhecer um pouco a minha dificuldade. As pessoas normais ficam com raiva, mas o Rodrigues, aqui, se ficar com raiva só pensa em beber. Essa é uma característica do compulsivo e você sabe que existem vários jeitos de extravasar a compulsão. Existe o cigarro, existe o sexo, a comida…

Rodrigues está sóbrio há 20 anos

Qual o índice de sucesso no programa dos 12 passos?

A gente gostaria de dizer assim que ele é eficaz pra todo mundo, mas não é assim. Muitos ‘amigos’ de AA já fizeram pesquisas acadêmicas e eles trouxeram essas informações pra nós, nos acompanhando, que não é diferente de outros lugares. É uma doença complexa. É muito simples você dizer: Rodrigues, para de beber. Não é assim. O alcoólico tem uma necessidade de beber. A bebida, pra ele, tem um sentido muito maior. Para que ele tenha sucesso, são necessários vários fatores. Não é só pelo caminho do AA, não é só pelo caminho da religião. O alcoólico tem que ser abraçado por uma rede de apoio, principalmente familiar. Porque nós sabemos que o Rodrigues bebe, mas quem fica tonto é a família. Então, o processo de sucesso vai muito além do alcoólico. Ele perpassa pelo entendimento maior desse processo pra que ele tenha sucesso. A gente pode dizer que, de 100 pessoas que procuraram o AA, só 10 permanecem

Por que esse número?

Porque existem aqueles que vão compreendendo esse processo de recuperação. Porque qual o sentido de parar de beber, pra mim que sou alcoólatra, onde o álcool se tornou referência em minha vida para tudo? Então, é preciso encontrar esse novo sentido. E esse sentido eu encontro nesse caminho, que agora, exige um pouco da pessoa. Para isso que existem os grupos de AA. Eu não tenho atestado de cura. Estou há 30 anos sem beber. Eu não tenho um atestado dizendo que estou curado. A cura não se estabelece porque eu parei de beber. O alcoolismo é uma doença que não tem cura.

Os 12 passos para não voltar a beber

Quais os principais desafios hoje do AA no Amapá

O AA é uma entidade sem fins lucrativos e não aceita doações fora do AA. Ou seja, nenhuma instituição – por mais que sejam nossos parceiros ou amigos de vários segmentos – não podemos aceitar doações. Por tradição, desde 1950 quando foram reconhecidas as tradições de AA, decidimos que essa obra seria custeada somente pela contribuição de seus membros. Aí, as pessoas se perguntam: como é que bêbados podem assumir essa responsabilidade? Pois é, bêbados bebendo realmente, não tem como. O que a gente deseja hoje é um apoio das pessoas da imprensa, da religião, essa divulgação para que as pessoas compreendam o papel AA. Hoje nós funcionamos atrás da igreja, mas não significa que a igreja nos deu. A igreja nos cedeu. Nós não podemos comprar prédios, só podemos alugar. A parceria é essa: o AA não recebe donativos de nenhuma empresa, mas faz parceria. Se uma instituição disser: AA, eu tenho uma sala disponível. Vocês gostaria de ocupar? Aí, sim.

Irmandade está a 43 anos no Amapá

Qual a história do Rodrigues?

Eu começo em 1992. Chego em AA com 25 anos de idade. Comecei a beber com 14 anos. Muita gente começa a beber e se embriaga, eu não me embriaguei. Eu tive o uso de bebida alcoólica dos 14 aos 18 anos sem nenhuma embriaguez. Só me embriaguei aos 19 anos. Eu até brincava com meus amigos porque eu bebia junto com eles e não ficava bêbado igual a eles. Depois que eu mudei do vinho pra cerveja meus primeiros porres começaram. Eu nasci numa família que tinha bens. Meu pai tinha duas panificadoras, comércio… nasci numa família que tinha um padrão de classe. Tinha as melhores escolas, faculdades, ou seja, nasci num berço de ouro. Tive moto, carro. Mas quando as coisas começaram a despencar – porque quando me dão essa responsabilidade e eu não consigo administrar isso – comecei a beber com mais frequência. De repente estava bebendo todos os dias, em média, 10 cervejas.

O que passava pela sua cabeça naquela época?

Pra mim não havia nada de anormal porque eu continuava trabalhando. Casei com 21 anos, mas já estava preocupado com isso. Ninguém precisou me falar, eu fui percebendo que havia algo de errado. Eu fui líder de juventude da comunidade católica, fui seminarista, então eu aprendi algumas coisas que começaram a chocar com as minhas práticas de vida. Eu estava totalmente desvirtuado. Por isso decidi casar, pra me afastar disso. Meu pai apoiou, minha família toda apoiou. Foi quando eu descobri que casado bebe mais que solteiro (risos). Aí, a minha turma toda casou também. Então aquele problema que era da minha família e meu passou a ser da minha nova família: esposa e duas crianças. Veja que quando a gente fala de inferno a gente tem ideia de um lugar de fogo e tal, mas existe o inferno emocional. Daquilo que a gente causa às outras pessoas, a insegurança. Mas o pior é quando a família para de acreditar. Eu procurei ajuda de três profissionais. Eles tiveram dificuldade pra diagnosticar. Diziam que eu estava ansioso, estava estressado e nunca diziam que a bebida tinha algum fator ali. Então eu continuava bebendo. Alguns diziam pra eu mudar de bebida. Evitar cachaça, que tomasse só vinho, só uísque.

Como você foi parar no AA?

Quando eu cheguei em AA, estava com problemas na família e financeiro. Por isso, eu tive dificuldade de ficar no AA. A bebida não me levou pra rua, pra delegacia, para a violência, confusões, calotes… por isso eu tive dificuldade em ficar, porque eu não tinha um histórico de cachaceiro. Porque quando você vai ao AA, vê cada depoimento, que eu ficava envergonhado. Porque diziam pra mim que só chegava no AA quem chegou no fundo do poço. No início era assim. Só que com o tempo isso foi mudando. Jovens, empresários e chefes de família começaram a bater na porta de AA pedindo ajuda. Aí tivemos que começar a pensar nisso. Chega um momento que a doença fica tão forte que a própria vontade não se estabelece mais. Então eu fiquei com medo disso. Eu disse será que vou ficar assim? O AA não me obrigou parar de beber, ele ofereceu uma saída. Para ser membro de AA, você tem que ter o desejo de parar de beber. Eu cheguei bêbado no AA. Tomei 10 cervejas pra poder chegar ao AA. Não tive coragem de ir sóbrio. Achava que depois da reunião a gente ia para um barzinho conversar bater um papo (risos). Ali aprendi a evitar o primeiro gole.

Escritório do AA em Macapá

Quer mais informações sobre o AA? (96) 99141-4945 ou (96) 3222-5154.

Seles Nafes
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