Por PAULO MADEIRA, juiz de Direito
Nos últimos anos, sobretudo depois do lançamento do livro “Como as democracias morrem”, by Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, os formadores de opinião, através da imprensa, e também o meio acadêmico, passaram a refletir de forma mais acentuada sobre os novos mecanismos usados por autocratas ou por líderes populistas para minarem a democracia, fugindo dos clássicos golpes militares, como os ocorridos no Brasil e no Chile, para ficarmos em dois exemplos ligados diretamente à nossa realidade.
Sobre a ligação entre o golpe militar no Chile e a nossa realidade brasileira, para que não pareça uma afirmação vazia, é recomendável a leitura do livro “O Brasil contra a democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a guerra fria na América do Sul”, by Roberto Simon.
Com o desenrolar das reflexões passou a ser quase um lugar comum a afirmação de que as democracias começam a colapsar com a desmoralização das instituições democráticas, o que pode ocorrer de várias formas: diminuição dos poderes dos órgãos de fiscalização, supressão de prerrogativas de Juízes e Juízas, alteração das composições dos Tribunais, com aumento de vagas para possibilitar nomeações casuísticas, dentre outras.
Também passou a ser lugar comum a reflexão de que esses mecanismos de desmoralização da democracia foram potencializados pelo fenômeno das redes sociais, uma das transformações mais impactantes na sociedade atual. No Brasil, sobretudo a partir das eleições de 2018, o impacto das notícias falsas, as chamadas fakes news, através das redes sociais, foi quase devastador para as instituições que zelam pelas eleições no Brasil.
A afirmação insistente de um líder extremista sobre a vulnerabilidade das urnas eletrônicas, mesmo sem base material ou aderência ao histórico das eleições por esse meio, que vem desde 1996, ganhou corpo no mundo virtual, virou verdade paralela para muitos, e obrigou o Tribunal Superior Eleitoral – TSE, a fazer um movimento (equivocado, como hoje se reconhece), consistente em trazer para dentro dos órgãos de acompanhamento e segurança da Corte uma representação militar, como se a democracia precisasse dessa chancela para não deixar dúvida sobre a idoneidade do processo eleitoral.
Tudo isso dito, cabe uma relexão sobre um desdobramento do fenômeno das redes socias, a partir de fatos atuais do mundo físico, do mundo real, o que chamo de marketing eleitoral predatório a partir dos debates em estúdios de TV.
Estamos falando, claro, dos acontecimentos na cidade de São Paulo, onde um candidato, quase sem tempo de propaganda eleitoral gratuita, encontrou um meio de se tornar conhecido por quase toda a população: agredir, de forma impiedosa, verbal e até fisicamente, através de um Assessor, os adversários presentes no mesmo espaço que era para ser de debates.
As agressões, por razões humanas compreensíveis, vão gerando reações, algumas destemperadas, como foi o episódio que já entrou para a história das nossas eleições, de forma caricata, a cadeirada no provocador.
Qual o grande problema disso, para além da bizarrice, em si, e das possíveis implicações criminais? Sem dúvida, o proveito político eleitoral para o provocador, o que pode fazer escola, e ajudar, por esse viés, a desmoralizar as instituições democráticas, suprimindo das matérias jornalísticas os debates de ideias, para que as notícias sejam exatamente aquelas que não deveriam ser dignas de comunicação: os atos de violência física e moral entre candidatos que foram registrados perante a Justiça Eleitoral.
Não se trata aqui, por óbvio, de qualquer tentativa de responsabilizar a imprensa pela divulgação das violências que viraram marketing eleitoral predatório, se trata, sim, de uma reflexão que todos nós devemos fazer sobre a contribuição, ainda que involuntária, que os formadores de opinião acabam dando para os provocadores.
É preciso reagir, e o ordenamento jurídico nos dá as ferramentas. A Justiça Eleitoral, do mesmo modo que todos os segmentos do Judiciário, está vinculada a alguns princípios fundamentais estampados na nossa Constituição Federal e que são, na essência, representativos da nossa adesão aos avanços civilizatórios inseridos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, com destaque para a dignidade da pessoa humana, o princípio mais importante.
Para que não reste dúvida sobre a obrigação da utilização desse princípio nas decisões judiciais, necessário recorrer a uma norma de sobre direito, inserta no Código de Processo Civil de 2015, o Art.8º, que diz:
“Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.
Aliado a essa previsão, para ficarmos no campo próprio do Direito Eleitoral, temos que as novidades incluídas na Resolução TSE nº 23.610/2019, através da Resolução TSE nª 23.732/4024, nos apontam um caminho. No Art.9º – F, da Resolução em questão, vem uma previsão que, mudando o que tem que mudar, pode ser adotada para os casos de marketing eleitoral predatório a partir dos debates em estúdios de TV. Diz o dispositivo:
“Art. 9º-F. No caso de a propaganda eleitoral na internet veicular fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados sobre o sistema eletrônico de votação, o processo eleitoral ou a Justiça Eleitoral, as juízas e os juízes mencionados no art. 8º desta Resolução ficarão vinculados, no exercício do poder de polícia e nas representações, às decisões colegiadas do Tribunal Superior Eleitoral sobre a mesma matéria, nas quais tenha sido determinada a remoção ou a manutenção de conteúdos idênticos”.
Se por uma lado não é defensável a censura prévia, que permitiria e exclusão de um determinado candidato de um debate em razão das práticas predatórias nas redes, parece defensável que a constatação dessa prática reiterada nos debates, com o objetivo de tirar proveito político a partir da desmoralização das instituições democráticas, gerando “notícias” nas redes sociais e até na imprensa profissional, justifica a atuação do Ministério Público e do Estado-Juiz para instauração de procedimento voltado para a exclusão do predador da corrida eleitoral, que deve seguir regras e princípios, preservando a dignidade da pessoa humana.
É preciso reagir enquanto a prática não virou epidemia.
Paulo César do Vale Madeira Juiz de Direito, Ex-Juiz membro do Tribunal Regional Eleitoral do Amapá, Mestre em Direito Constitucional pela UnB. Um dos membros coordenadores da ABRE – Associação Brasileira de Eleitoralistas