Por SELES NAFES
“A vida é feita de escolhas.” “Você será amanhã o resultado do que escolhe hoje.” Essas frases, repetidas inúmeras vezes, nem sempre fazem sentido para os jovens blindados pela arrogância da idade. Em alguns casos, a luta para convencê-los a ficar longe das drogas, e das más companhias, é como tentar quebrar uma parede de tijolos com uma vassoura.
Com o tempo, os conselhos se tornam irritantes, impossíveis de ouvir. E quem decide pagar para ver acaba aprendendo na prática. Não demora para os problemas chegarem como um tsunami, destruindo tudo pelo caminho.
Nicodemos (nome fictício), de 51 anos, é um baiano que veio morar no Amapá depois de ouvir que Macapá era o “paraíso das drogas”. Naquele momento, ele já havia tomado uma série de decisões erradas. No Amapá, preso por um crime que afirma não ter cometido, ele foi para a cadeia ciente de que, no fundo, sua prisão estava justificada por outros delitos cometidos ao longo da vida.
Na Bíblia, Nicodemos era uma liderança judaica que ouviu de Jesus um conselho: era preciso “nascer de novo” para entrar no Reino de Deus. O Portal SN conversou com esse Nicodemos da vida real, em uma entrevista conduzida por e-mails, já que ele mora em outro estado, onde reconstrói a vida. No universo da dependência química,Nem sempre dá tempo de começar de novo. Ao longo desta edição, escolhemos fotos de personagens reais que tivemos histórias contadas pelo site.
Onde você nasceu?
Nasci em Alagoinhas, Bahia, em 1º de abril de 1971, mas fui criado em Salvador. Tive uma infância normal para os padrões da época, brincando muito e aprontando tudo que uma criança saudável e feliz pode aprontar.
Você tem uma profissão?
Hoje sou técnico em help-desk (conserto de computadores de mesa), mas aceito trabalhar em qualquer área, ainda que tenha que pegar fezes com a mão. Isso faz parte do meu processo evolutivo e não me define. Estou tentando me qualificar em eletrotécnica.

Grávida dependente química entrevistada pelo Portal SN em 2019
Você completou seus estudos?
O mais curioso é que, até 2022, eu tinha apenas a 3ª série do ensino fundamental. Foi então que decidi arregaçar as mangas e lutar para mudar e melhorar de vida. Naquele momento, já fazia dois anos que eu havia saído da cadeia e, por incrível que pareça, deixei o vício dentro dela, graças a Deus.
Por que você foi preso?
Fui preso em 5 de janeiro de 2017 e saí no dia 20 de outubro de 2020. Foram praticamente quatro anos de terror. A vida de preso não é fácil, mas também não é injusta na maioria dos casos, como no meu.
É bem comum, na cadeia, o preso ser recrutado por facções. Você viveu isso?
Quando cheguei na cadeia, depois de condenado num período que achei muito curto, fui transferido do (pavilhão) Provisório para o Fechado. Foi aí que consegui meu primeiro emprego que chamo de “emprego prisional”. Eu fui recrutado para a fabricação de cachaça, depois fui ser “mordomo”. Nessa função, a pessoa precisa lavar a roupa, cozinhar e fazer a faxina de presos que têm condições de pagar. O salário é a droga, roupas e chinelos, materiais de higiene e etc.
Então você continuou usando drogas no Iapen?
No dia de visita a droga que eu pegava eu consumia junto com outros viciados. Porém, o milagre aconteceu! Como se tivesse tirado de mim uma venda dos meus olhos, eu comecei a ver o que os viciados não enxergam. Para mim, foi revelado o quanto é feio o uso de entorpecente na visão de quem não usa. Foi então que a vergonha do uso passou a ser muito maior que a vontade de usar. Daí o seguinte: o uso caiu muito, até eu não usar mais. Quando tentava, me dava uma sensação de arrependimento e vergonha. Isso foi uma operação divina, Deus me libertou do vício da droga ficando apenas com o o tabagismo. Com o tempo, eu me converti e mudei pra a cela dos crentes, graças a Deus. E, assim, abandonei o vício. Se Deus quiser, pra nunca mais.
Esse foi o ponto de virada?
Deus tinha outro plano para mim. Fui preso em 2017 por um crime que não cometi, mas que acabou justificando um crime cometido meses antes.
Fiquei irado ao saber que estava sendo preso “injustamente”. Mas, ao longo dos anos, percebi que tudo era um movimento de Deus para me livrar das drogas e da morte. Permaneci quatro anos no projeto Liberdade e Cidadania, organizado pela prefeitura e pelo Judiciário amapaense. Abracei a oportunidade que me foi dada. Trabalhei, estudei e, mesmo após concluir o ensino médio, continuo estudando.
Como foi seu primeiro contato com as drogas?
Meu primeiro contato com as drogas foi aos 13 anos. Eu era praticamente uma criança querendo ser adulto precocemente. Via no cigarro, no álcool e na maconha um atalho para essa fase.
Em 1993, eu era apaixonado por uma menina que não estava ao meu alcance, e isso me fazia sofrer muito. Então, decidi ir embora para esquecê-la. Fui para São Paulo e tive meu primeiro contato com o crack. Tempos depois, abandonei as drogas e segui trabalhando. Ainda me envolvi em alguns crimes e fui preso. No dia 5 de janeiro de 1998, nasceu meu filho Gabriel, e decidi abandonar tudo e levar uma vida dedicada à família, longe das drogas.
Como foi sua experiência como hippie?
Vendendo artesanato, cheguei até a Venezuela, em 2008, já separado da minha família. Como se estivesse em depressão, comecei a usar drogas novamente — foi o início do meu fim.
Estava em Manaus quando ouvi que Macapá era o “paraíso das drogas” e, num impulso autodestrutivo, decidi me acabar nelas. Chegou um momento em que, de tanto usar drogas, eu já não trabalhava mais.
Era uma tristeza imensa. No fundo do meu coração, eu não queria sair vivo daquela situação. Eu estava no fundo do poço — ou, melhor dizendo, um pouco abaixo do fundo. Viciado, envolvido com todo tipo de imundície, cercado por gente apostando par ou ímpar para ver quem me mataria primeiro.

Dependentes químicos na orla de Macapá, em 2020. Foto: Seles Nafes
Durante a dependência, como era sua relação com a família?
Minha família tem pouca instrução e, apesar de tentar me ajudar, não tinha condições financeiras para isso.
Minha relação com meus pais não era ruim, porque eu sempre os ajudava muito. Era o único filho homem entre cinco irmãos e assumia responsabilidades. Cuidava das minhas quatro irmãs enquanto meus pais trabalhavam. Dava banho nelas, levava e buscava na escola. Quando meus pais chegavam, a casa estava limpa, as meninas alimentadas e de banho tomado.

Dependentes químicos em recuperação, num centro terapêutico em 2017
Você chegou a morar na rua?
Sim, e passei vários dias acordado sob efeito de entorpecentes. Nunca me envolvi em crimes de morte, mas cometi outros delitos, o que me levou a passar tanto tempo preso.
Desde quando você está limpo?
Desde 2018, graças a Deus.
Quais são seus planos para o futuro?
Continuar estudando, me qualificando e empreendendo. Quem sabe me tornar um grande empresário? Me inspiro muito em Pablo Marçal e Geraldo Rufino. Admiro pessoas que representam superação, resiliência e força de vontade para construir legados.
Que conselho você dá para quem está lendo esta reportagem?
Se afaste de quem não inspira crescimento. Esteja próximo de pessoas sábias, que venceram ou estão lutando para vencer.
Não aceite conselhos de quem não tem resultados positivos. Não se deixe levar pelos prazeres momentâneos do álcool, das drogas e do cigarro.
Olhe para aqueles que priorizaram esses prazeres e veja onde estão. Agora compare com quem investiu em estudo e trabalho. Você não precisa ser muito inteligente para perceber qual é a melhor companhia.