POR MANOEL DO VALE
Há alguns anos, lendo um artigo sobre a estética do grotesco na propaganda, publicado na Revista da Criação, vi um anúncio pra lá de horripilante: um fotógrafo carioca mandara fazer cartões de visita com mensagens do tipo: “Se for perder a cabeça, me ligue”. A foto que ilustrava o cartão era a de um homem decapitado caído no asfalto.
O anúncio me chamou a atenção a ponto de nunca mais esquecê-lo pela extrema bizarrice de sua mensagem.
No entanto, a criatividade draconiana daquele fotógrafo era apenas o reflexo do que é a sociedade brasileira (na verdade, mundial), que tem fascínio pelas tragédias humanas.
Desde tempos remotos, o que chama de fato a atenção do “leitor” são as traições (conjugais), as fofocas dos famosos e, o primeiro da lista, os crimes violentos (não importa se culposos ou dolosos).
Isso explica o sucesso de programas como BBB e os jornalísticos policiais, do gênero espreme que sai sangue.
Dia desses peguei um filme para assistir, de título “O abutre”, cujo protagonista, Lou Bloom (Jake Gyllenhaal), deixa a carreira sofrida e pouco rendosa de ladrão para se transformar em um bem-sucedido nightcrawler (título original do filme) ou, como dizemos aqui no Brasil, repórter mundo cão, correndo atrás de histórias e imagens das mais chocantes possíveis para vender às emissoras de TV.
Bloom é de uma sagacidade impressionante e tem uma visão empreendedora tão afiada que nos desperta um misto de admiração e asco, pois ele não tem qualquer caráter, sendo capaz de tudo para conseguir os melhores ângulos e as cenas mais chocantes, nem que para isso tenha que matar a concorrência ou seu parceiro de trabalho, que ele explora até o osso.
A trama, que se desenrola na cidade de Los Angeles, faz crítica à falta de ética e de moral que permeiam esse estilo de jornalismo na vida real.
Sei que para encarar o mundo cão, ou o submundo, como dizem outros, o profissional tem que ter dois estômagos para tomar o café da manhã tranquilamente enquanto envia as fotos e texto para as redações.
Não faz muito tempo resolvi parar de receber em meu celular as imagens de pessoas destroçadas enviada via WhatsApp, porque mandei sem querer à uma amiga a foto de um homem com metade do rosto arrancado à bala.
Os “abutres” das madrugadas nossas de todos os dias, aqui no Amapá, se conta nos dedos. Os bons. Entre eles, está o Olho de Boto, cujo alcunha por si só suscita um certo receio de sua figura.
Entrevistei o Olho de Boto, num começo de manhã. Ele falou, entre outras coisas, da paixão pelo editorial espreme que sai sangue, que o fez largar a vida pacata de bancário pelo corre atrás das rondas policiais. Vida que ele não troca por nada.
A receita para o sucesso do gênero na televisão tem como ingredientes um apresentador mal-encarado que parece sempre pronto a bater e destroçar a malandragem e até mesmo o poder público; um assistente zé ruela, que, quando não é feio é anão; e a longa exposição dos infelizes assassinados (com vendas nos olhos e ferimentos borrados) ou dos assassinos, ladrões, etc.
É incrível como a população pobre compra a ideia de que o apresentador fanfarrão e vociferador é seu paladino.
Em Belém, na década de 1980, havia o Adamor Filho, o danado, que, se não me engano, conduzia o programa a Patrulha da Cidade, na rádio Marajoara. Um sujeito buchudo e atarraxado que escrachava e até batia nos meliantes presos. Meu vizinho de bairro.
Era sucesso na cidade e, dizem, temido pela marginalidade.
Mas era tudo fake. A casa caiu para o “danado”, quando ele ficou doente e não pode ir a rádio fazer seu programa. Para não ficar fora do ar, Adamor contratou uns amigos meus que tinham talento para a pantomima para que eles fingissem ser bandidos sob as peias e sermões do apresentador linha dura.
E é esse gênero jornalístico, que mistura encenação com sangue de verdade, que tem ajudado a banalizar a violência nas cidades, ganhando a vida com a morte ou a desgraça dos outros.
“Se você está me vendo, está tendo o pior dia de sua vida”. Esse é o slogan que vem na capa do Abutre.
Um texto que cai muito bem para esses profissionais que vão ao submundo colher notícias para nos servir no café da manhã ou no almoço.
Foto de capa: The New York Times