Por PAULO REBELO, médico cardiologista
Ainda sou de uma época em que as doenças pareciam ter um ritmo diferente. Pareciam evoluir nos pacientes quase que parando no tempo.
Era num período de escassos exames quando o diagnóstico de um ataque cardíaco e pedra na vesícula eram um grande exercício de observações e sofrimento, estando o médico aparentemente passivo ao sabor da evolução das doenças.
É quase inimaginável pensar que não existia a ultrassonografia, exame de imagem fundamental para o diagnóstico de várias doenças.
As doenças aproximavam os seres humanos que pareciam ser mais humanos. Era um misto de ignorância pura e inocência, tisnada de misticismo e religiosidade, porém com muita compaixão, solidariedade e senso de pertencimento de um ao outro.
O enfermo sentia-se cuidado e amado. As visitas eram frequentes e longas. Preparava-se um chá caseiro, recitava-se uma oração de cura, colocava-se uma medalhinha ou uma imagem santa para ficar na cômoda ou na cabeceira da cama do enfermo; um unguento refrescante, a cura através da imposição das mãos sobre o corpo…tudo isso era algo muito especial.
Curiosas, as pessoas se impressionavam com as doenças e importavam-se genuinamente com o sofrimento alheio.
As visitas dos amigos e entes queridos eram reais e não virtuais. As naturais dificuldades de diagnóstico e tratamento faziam com que médicos e pacientes e seus familiares fossem muitos mais próximos.
O médico era visto como um semideus, porém, acima de tudo o “doutor”, o verdadeiro conselheiro, o amigo, o médico da família.
A inexorável dinâmica da vida alterou tudo isso. As visitas foram substituídas mensagens de textos, emotions e transmissão ao vivo. Os enfermos não são mais pacientes, são “clientes”. Parecem mais querer “comprar a saúde”. A saúde não é mais um bem; é uma mercadoria.
Os exames STATE-OF-ARTS como tomografia computadorizada, ressonância nuclear magnética, cintilografia e PETSCAN trouxeram praticidade e velocidade diagnósticas, e avanços fantásticos para o tratamento de quase tudo; examinam tudo, menos a alma humana.
Esse é o trabalho do médico de corpo e alma. Todavia, os exames de imagem tornaram-no quase um autômato, um robô, abolindo a conversa afável, conferindo-lhe frieza, diminuindo a nobreza da medicina humanizada.
Assim, o grande paradoxo da moderna medicina: verdadeiramente, ela acabou ou diminuiu em muito o sofrimento imposto ao corpo, abreviando o tempo para a cura.
Mas, a verdade nua e perversa é que acabou, também, com a capacidade pedagógica da doença em fazer com que o homem refletisse mais sobre a seriedade de sua condição não somente clínica, mas humana, que transcende meramente a dor física.
A convalescença tornou-se tão breve que, entre outras tantas necessidades cotidianas, não lhe sobra tempo para pensar, senão em voltar o mais rápido possível àquela vida que tanto inconscientemente lhe prejudicou.
O homem perdeu a capacidade de sofrer, de refletir sobre si mesmo. Não sabe ou deseja assimilar o poder transformador das doenças. Assim, não havendo conscientização plena sobre o que lhe ocorre, as chances de reincidência são enormes.
Pois, naqueles tempos, as doenças e internações eram de semanas ou meses. E nesse longo período, o paciente tinha tempo o suficiente para pensar sobre seus “pecados venais e capitais, portanto a oportunidade de arrependimentos; a verdadeira cura da alma e não só do corpo.
A modernidade até tenta humanizar a relação médico-paciente e familiares com o homecare, cuidados paliativos, saúde da família, porque isso são coisas louváveis, mas resta saudosa no coração e mentes de ambos a verdadeira visita médica quando a sua palavra era um bálsamo.
Ainda sou de tempo em que isso era um “acontecimento”. O médico era a visita mais importante e aguardada para o enfermo. Preparava-se a casa para recebê-lo.
A TV era desligada, o telefone fixo era tirado fora do gancho, as crianças eram proibidas de ficar na sala. Chá ou café fresquinho e quente, biscoitos finos eram ofertados ao médico. Sobre a mesa, toalha de renda.
Não era apenas a visita de um conhecido médico; era a visita do médico amigo.