Por ANITA FLEXA
Quatro anos depois, as memórias ainda assombram Chrysler Davys Barbosa da Luz. Guarda civil aposentado, ele é um dos sobreviventes do trágico acidente do Navio Anna Karoline III, naufragado em águas amapaenses em 2020, no sul do estado.
Davys foi resgatado por uma balsa que passava no momento da tragédia. Ainda assim, ficou 6 dias no local, esperando o resgate do corpo da esposa, a empresária Marlene Barbosa de Lima da Luz. Ela tinha 38 anos.
Em um depoimento emocionante e marcado pela saudade, Chrysler Davys relembrou os últimos momentos ao lado da companheira a quem jurou envelhecer ao lado. A promessa não foi possível de ser cumprida. Ela foi interrompida na noite do dia 29 de fevereiro daquele ano.
O guarda civil estava em um grupo que seguia viagem para o município de Almerim, interior do Pará, para o aniversário de uma amiga. Na comitiva, estavam 7 pessoas de sua família.
“Só no navio eram 19 pessoas do nosso grupo. Chegamos, nos acomodamos e alguns de nós nos reunimos para bater uma foto para guardar de lembrança. Da minha família, era eu, minha esposa, meu cunhado e a esposa dele junto com as duas filhas, e mais meu outro cunhado e sua esposa. Sinceramente, eu não tava tão afim de ir para aquela comemoração, mas minha esposa insistiu muito e se arrumou toda, fez cabelo, unha, maquiagem, estava linda”, revelou.
Segundo Davys, o navio partiu às 18h, aparentemente sem problemas, já que agentes da Marinha estavam no local, vistoriando a embarcação por fora.
“A gente viu a Marinha lá no local presente, foi rápido, mas estava lá. Eles deram uma vistoriada por fora, mas não vi eles entrando”, relembra.
Entretanto, logo que o navio saiu do deck, puderam perceber a aproximação de outra embarcação, dessa vez de menor porte, aproximadamente 1 km depois, nas proximidades da região do Matapi, segundo o sobrevivente.
“Outro barco encostou, uma voadeira, que trazia um motor bomba, eu sei porque conheço esse tipo de motor, creio que era pra tirar água que tava entrando no navio, no porão”.
Ele conta que logo depois disso, a viagem seguiu. Davys lembra que o navio tinha tantos passageiros que só conseguiu se acomodar perto de meia noite.
“Como o navio estava muito lotado e não tinha mais onde atar a rede, eu dei preferência pra minha esposa, enquanto eu fiquei andando pelo navio, até que achei um banco, me sentei e adormeci”.
Desespero
Davys recorda que despertou no banco um pouco antes de tudo acontecer. Ele contou que um barco menor parou ao lado do Ana Karoline III, para abastecer o navio.
“Só consegui perceber quando o capitão desligou o motor do barco. Começou a chover e ventar, e o rio ficou agitado. Foi nessa hora que o barco começou a virar. Foi tudo muito rápido. Acordei na hora que caí do banco e o navio já estava tombando, estava escuro, era de madrugada e o barco já tinha virado muito. Só eu tempo de eu correr até onde a minha esposa estava, ainda falei com ela, que já estava, fora da rede. Olhei pra cima e vi um colete, peguei e dei na mão dela, disse pra ela pôr, foi na hora que tudo virou de vez e a água entrou. A gente afundou e depois não consegui ver mais nada”.
Puxado para o fundo, Davys lutou contra a força da sucção do navio submergindo e conseguiu chegar à superfície. Avistou o barco que fazia o abastecimento. As águas estavam quase que cobertas pelo óleo diesel que derramou com a agitação do rio.
“Eu consegui me segurar nesse barco. Eu me segurei, e fui me arredando pelo lado, e foi aonde eles me viram e me puxaram e me encharquei de óleo diesel, eu tinha um ferimento na cabeça e um bem feio no pé”.
Ainda imerso na água barrenta, Davys nadou com todas as suas forças até a superfície. Desesperado, ele usou até seu último fôlego para tentar achar a esposa no meio de cargas e estilhaços do navio que estavam na água, até que foi resgatado pela tripulação da balsa que passou logo após o naufrágio.
“Nesse momento passei pra essa balsa grande, foi aonde conseguimos salvar algumas pessoas, outras foram salvas por ribeirinhos que estavam por lá. Já era mais de cinco horas da manhã e fomos conferir quantas pessoas tinham sobrevivido do navio. Nesse momento tinham só 23 pessoas”.
Apesar de ferido, ele permaneceu 6 dias no local do acidente em busca da esposa, e dos amigos do grupo. Quando foi transferido para Macapá, ficou sabendo que o corpo de Marlene havia sido encontrado, estava dentro do navio.
“É impossível esquecer. Uma pessoa que a gente gosta, que gostava muito, é impossível esquecer. Ela sempre vai estar no meu coração e na minha lembrança. Vivemos juntos por 25 anos e essa tragédia a tirou de mim, se não fosse isso, iríamos fichar juntos até a ficarmos velhinhos. Mas nunca vou esquecer dela, sempre vai estar na minha lembrança. É impossível esquecer, é impossível”.
Chrysler Davys construiu uma nova família. Casou de novo e teve uma filha, que hoje tem 1 ano. Apesar do recomeço, ele ainda está em uma fase de adaptação. O trauma ainda persiste.
“Não consigo dormir de noite, fico lembrando das horas de agonia. Agora quero que a justiça seja feita, desde o naufrágio, não houve julgamento, eu pelo menos, não fui chamado para dar depoimento”.
Do grupo de 19 pessoas que Davys estava, apenas ele e outras três sobreviveram.
A tragédia
O naufrágio aconteceu na madrugada do dia 29 de fevereiro de 2020, próximo à Ilha de Aruãs e à Reserva Extrativista Rio Cajari, no Rio Amazonas, distante cerca de 130 quilômetros de Macapá.
A embarcação saiu de Santana e tinha da cidade de Santarém como destino final. A dificuldade de acesso e comunicação no local atrasaram os contatos com a Capitania dos Portos do Amapá.
De acordo com o inquérito da Polícia Civil, a embarcação levava 170 toneladas de produtos, mais do que o dobro da capacidade, sem autorização para fazer esse transporte junto com passageiros.
Ainda não houve julgamento da ação penal contra os envolvidos no naufrágio.