O legado fantástico de Fernando Canto: um convite à literatura amapaense

Em Mama Guga, o autor crava em nossa memória coletiva que vivemos em tempos de ‘carestia’, onde cada vez mais o suor de nosso trabalho é desvalorizado, diminuído.
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Por KEULLY BARBOSA*

É bem verdade que muito já se escreveu sobre Fernando Canto, antes e depois de sua partida, em 29 de outubro de 2024. No entanto, acredito que valerá a pena conhecer um pouco mais sobre o literato Fernando e alguns aspectos que talvez nos ajude a compreender mais sobre a literatura amapaense a partir da percepção estética de um dos maiores ficcionistas da Amazônia.

Nas primeiras linhas de “Mama Guga”, conto que inclusive dá nome ao próprio livro do autor (2017), o narrador menciona um contexto de ‘carestia e desencanto’. Não obstante, se pensarmos em nosso momento atual, e não me limito apenas às terras amazônicas, Fernando Canto, por meio de sua ficção literária, crava em nossa memória coletiva de que deveras vivemos em tempos de ‘carestia’ – onde cada vez mais o suor de nosso trabalho é desvalorizado, diminuído. E também tempos de ‘desencanto’ – se admitirmos que estamos perdendo o poder e a sensibilidade de nos encantar com o belo, com o que é simples e, infelizmente, até mesmo com nossos semelhantes.

Essa sensibilidade ao qual faço referência, permeia toda a obra do escritor Fernando Canto, e se isso é verdade, está também impregnada no ser humano Fernando Canto. Não quero ser retórico com isso e ratificar a deia de que a obra se difere do seu criador, pois essa premissa, há muito, está consolidada no universo da literatura. Quero me ater, sobretudo, em Fernando, alguém que recusou convites de colegas da Unifap para lecionar e assim poder dedicar-se ao ofício que constituía o próprio sentido de sua vida neste plano terreno – o ofício de encantar-nos com as palavras, com as narrativas fantásticas que eternizou em suas obras publicadas.

Conhecemos Fernando principalmente por sua carreira na literatura, música e cultura. Mas é merecida a alcunha de intelectual. Denominação essa nos termos do célebre economista e também notável intelectual do mundo ocidental, Thomas Sowell; ‘pessoas cujas ocupações profissionais operam fundamentalmente com ideias – escritores, acadêmicos e afins.’ Não é de grande conhecimento da sociedade amapaense que um livro seu, intitulado “A água benta e o Diabo”, de menos de 100 páginas, publicado pela primeira vez em 1998, foi fruto da Especialização em Teoria Antropológica na UFPA -, que já revelava naquela época sua perspicácia e talento no meio acadêmico. Vale lembrar ainda que essa mesma obra o coloca como um dos pioneiros a pesquisar e escrever sobre nossa principal e mais autêntica manifestação cultural – o Marabaixo.

Como nenhum outro escritor, Fernando foi capaz de extrair de maneira poética, o que há de mais belo da cidade de Macapá; a nossa gente, o rio, as lendas, os causos, a floresta, elementos que muito lhe serviram de inspiração ficcional.

Faz-se pertinente lembrar que ao final de sua carreira como técnico administrativo da Unifap, concluiu seu Doutorado na Universidade Federal do Ceará, com a entrega de sua brilhante Tese “Literatura das Pedras: a Fortaleza de São José de Macapá como lócus das identidades amapaenses”. Produção científica essa que já é uma das principais referências para estudantes de graduação que se ocupam de pesquisa no campo temático da literatura, sociologia e historiografia amapaense.

Retomando a ideia inicial, no objetivo de evidenciar alguns aspectos do legado literário de Fernando Canto, vale a pena trazer à baila uma reflexão de Tzvetan Todorov, consagrado crítico literário – ao sentenciar sobre o que compreende de alguém que se propõe a mergulhar no mundo da literatura, notadamente, o caso do nosso saudoso escritor. Para Totorov:

“Não lemos para nos tornar especialistas em teoria literária, mas para aprender mais sobre a existência humana. Quando lemos, nos tornamos antes de qualquer coisa especialistas em vida. Adquirimos uma riqueza que não está apenas no acesso às ideias, mas também no conhecimento do ser humano em toda a sua diversidade.”

Fernando Canto escreveu desde as belezas naturais do Estado do Amapá até sobre os causos cômicos cotidianos da boêmia amapaense, que por nós passam desapercebidos, mas jamais pelo olhar do cronista Fernando, que se eternizaram, por exemplo, em sua obra “Adoradores do Sol – novo textuário do meio do mundo” (2010), que reúne dezenas de crônicas sobre os mais variados temas da sociedade amapaense. É dessa forma, portanto, movido por uma sensibilidade aguçada, que se revela o profundo conhecedor da realidade, mas principalmente do ser humano.

Há, nos escritos ficcionais de Fernando Canto, o diálogo permanente entre o real e o imaginário no contexto da Amazônia. Qualquer leitor que se aventurar pelos textos deste escritor vai perceber esse aspecto. Fernando Canto, como nenhum outro escritor, foi capaz de extrair de maneira poética, o que há de mais belo da cidade de Macapá; a nossa gente, o rio, as lendas, os causos, a floresta, elementos que muito lhe serviram de inspiração ficcional. E nas palavras do Professor Doutor, Yurgel Caldas (UNIFAP), sua “obra literária se vincula à tradição fantástica presente na Letras da Amazônia e da América Latina.

Fernando Canto não se limitou às belezas naturais na sua criação literária, mergulhou e escreveu sobre as inquietações psicológicas da alma humana. Foto: Divulgação

Nessa perspectiva, Fernando Canto não se limitou às belezas naturais na sua criação literária. A exemplo de um Machado de Assis ou um James Joyce, mergulhou e escreveu sobre as inquietações psicológicas da alma humana. Prova disso é a aventura fantástica de Mama Guga, texto que não ao acaso escolhi para desenvolver estas reflexões. No intento de corroborar com tal premissa, vejamos um trecho do conto que explicita as lutas internas/psicológicas que todos nós, pessoas comuns, inevitavelmente já passamos ou passaremos em algum momento de nossa existência:

“Esse quadro todo era previsto pelo meu avô Salim. Platonista atento que era às vicissitudes dos seus parentes mais próximos, repetia sempre a máxima de seu mestre: “assim como em cima é embaixo”. E enfatizava que há tempo para semear, tempo para plantar e tempo para colher. Meu pai estava no tempo de colher, ele dizia. Desde a morte de minha mãe, ele esquecera o sentido da reflexão, da meditação, como técnica a ser utilizada em tudo o que desejamos ou temos obrigação de realizar. Perdera a sabedoria e ganhara a esperteza ao meio da ganância e das práticas ilegais e resolvera agir, assim, pelo livre arbítrio, fora da Lei Cósmica. Meu pai estava evoluindo da sua divindade, de sua essência. Sabia disso e não ligava.”

Ademais, para fazer jus ao legado Fantástico mencionado no título deste artigo, o fragmento a seguir que corresponde ao desfecho do conto Mama Guga, desta vez evidencia o caráter fantástico da narrativa:

“Enquanto meu avô explicava, meu pai ajoelhou-se em nossa frente, invocou palavras desconhecidas para nós, seus filhos. Besuntou-se do suco de Mama Guga e salpicou sobre sua cabeça uma pequena quantidade de ouro em pó.

O rosto dele iluminou-se de felicidade quando o fogo fez seu corpo entrar em combustão e o ouro transmutar-se em uma diáfana camada de névoa amarelada. Tentamos correr para salvá-lo, chorando em desespero, mas meu avô nos impediu.

– É só uma ilusão, meus filhos… – disse o velho avô.”

Fernando poderia ter escolhido técnicas narrativas ou correntes literárias diferentes para contar suas histórias, mas decidiu optar foi pelo gênero literário do realismo mágico ou realismo fantástico, que se destacam justamente pela fusão entre elementos reais e fantásticos na trama narrativa. O que proporciona a nós, leitores, um percurso dramático onde o maravilhoso e o cotidiano se entrelaçam de forma natural. O conceito de Kafkiano pode também traduzir essa característica da ficção de Fernando Canto, onde o absurdo, o extraordinário, torna-se normal. Lembremos da cena inicial do clássico A Metamorfose (1915), de Franz Kafka, quando caixeiro viajante, Gregor Samsa desperta em seu leito metamorfoseado em um inseto horripilante. Há quem possa discordar, mas esse desfecho de Mama Guga tem algo de Kafkiano.

Esse gênero, muito popular a partir da segunda metade do século XX, explora o mundo de forma não linear, incorporando mitos, lendas e tradições locais, muitas vezes com um viés de crítica social e política. Nesse sentido, aos que conhecem um pouco da biografia de Fernando Canto, sabem que ele viveu momentos tensos em Macapá no período da Ditadura Militar (1964-1985). E esse contexto biográfico aparece de forma explícita no conto como uma crítica a esse período de nossa história política recente. Recente também é a bela homenagem feita a Fernando Canto, mais precisamente a sua coletânea de contos Mama Guga, materializada em Dissertação de Mestrado da amiga e escritora já consolidada na literatura amapaense, Carla Nobre. Fruto de densa e criteriosa pesquisa acadêmica, intitulado “Narrador autodiegético em Mama Guga – contos amazônicos, de Fernando Canto: retratos da cultura amazônica” (2021), já figura entre os grandes e consistentes trabalhos em torno da obra deste escritor paraense, imortalizado em Macapá.

Reitero aqui o convite aos leitores a consumirem mais a literatura amapaense, a se permitirem conhecer as nossas letras, a conhecer por exemplo a poética dos ladrões de marabaixo, passando pelos textos da professora Aracy Mont’Alverne, até chegar ao mundo fantástico de Fernando Canto. Garanto que se assim o fizer, terá o leitor também conhecido um pouco da própria história do Amapá, da criação e o desenvolvimento da cidade de Macapá. Em suma, não há nada mais convidativo a ler os autores locais do que o próprio legado de Fernando Canto, que por si só se faz grande e imortal na história da literatura amapaense.

Mama Guga traz retratos da cultura amazônica

Parafraseando o crítico literário brasileiro, Antônio Candido, em sua célebre defesa à literatura brasileira, escreveu ainda na segunda metade do século passado que:

(…) “a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela e não há outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão”.

Faço das palavras de Antonio Candido as minhas. Se nós não apreciarmos, se não pesquisarmos, se não lermos verdadeiramente a nossa literatura, ninguém o fará por nós. Dessa forma, teremos a matéria-prima que é a própria obra literária (prosa e poesia), mas não teremos leitores para consumi-la, tampouco teremos a crítica literária.

Ainda nesta linha de raciocínio, noutra letra de uma das canções mais consagradas da música popular amapaense, “Jeito tucuju”, de Joãozinho Gomes e Val Milhomem (2023), expõe o que se pode chamar de amapalidade, de sentimento de pertencimento do homem da Amazônia, não apenas do Amapá. Em determinada passagem, a música expõe:

“Quem nunca viu o Amazonas

jamais irá compreender a crença de um povo,

sua ciência caseira,

A reza das benzedeiras (O dom milagroso)

Quem avistar o Amazonas nesse

Momento

E souber transbordar de tanto amor

Esse terá entendido o jeito de ser

Do povo daqui”

Do mesmo modo, aos que não visitarem às páginas fantásticas, cheias de amazonidades de Fernando Canto, talvez jamais conseguirão compreender a alma amapaense, nosso jeito de ser, nossas belezas naturais, angústias e inquietações. Em alguma medida, é essa a nossa, e não outra literatura. Fica um alerta sobre a falta dessa compreensão a que se refere o narrador de Mama Guga quando menciona aqueles tempos de desencanto logo no início da aventura narrada no conto. Isto posto, se nos falta encantamento, é porque ele está sufocado em meio ao caos da modernidade cheia de barulho e ruído ao qual estamos todos mergulhados.

Remando pra beira, como dizemos aqui pelas paragens da Amazônia, lembro-me, com riqueza de detalhes, de certa vez, ao acaso, presenciar Fernando Canto aos pés do monumento Marco Zero do Equador, inerte e introspecto, olhando para o horizonte em direção ao rio Amazonas, quando foi abordado por uma jovem estudante em visita ao mesmo ponto turístico. A moça pediu, ao que pareceu, para tirar uma foto com ele, que por sua vez, sutilmente, se negou e pediu para não ser incomodado. Decerto estava no seu momento de contemplação, buscando talvez a inspiração que pairava em algum canto onde mirava seu olhar.

Fernando Canto manteve em suas obras o diálogo entre o real e o imaginário no contexto da Amazônia. Foto: Júlio Miragaia/SN

A princípio, sim, poderíamos facilmente julgá-lo por ríspido ou grosseiro. No entanto, não pude a época e não posso fazê-lo agora, mesmo distante temporalmente do causo. Compreendi naquele momento, naquele exato instante de um final de tarde ensolarado, que estava ali um escritor, um artista num de seus momentos mais íntimos e introspectivos de sua experiência com o processo de criação. Talvez quisesse dizer a todos que por ali passassem e ao majestoso rio amazonas, que nada mais importava, que aqueles minutos ao ar livre, na esquina do rio mais belo, estava um homem que vivia um de seus momentos mais intensos e únicos que alguém pode experienciar nesta aventura que chamamos de viver.

* Agente de Polícia Civil AP – Professor Mestre em Letras, com ênfase em Estudos Literários Pelo Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal do Amapá;

Sócio Proprietário do Curso Padrão – Preparatório Online para Concursos Públicos;

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