GESIEL OLIVEIRA
Quero compartilhar hoje com vocês uma experiência sui generis que tive recentemente quando conheci um lugar a cerca de 16 quilômetros de sede do município de Calçoene, 150 quilômetros de Oiapoque. No sede do município, fui apresentado a uma figura lendária daquela região, o Seu Garrafinha, como gosta de ser chamado o senhor Lailson Camelo da Silva, um senhor de 71 anos de idade, casado, avô de vários netos, que mora em frente à cidade de Calçoene, de frente para o Rio que corta a cidade.
Ele é o guarda parque dessa enigmática região. Ainda pela noite jantamos juntos. Com ele estava sua esposa Dona Nilza. Ele me contou detalhes que me deixou ainda mais curioso e intrigado a respeito daquele magnífico e misterioso achado arqueológico localizado no interior do Calçoene. No outro dia saímos ainda pela madrugada em direção a essa região cheia de mistério em Calçoene.
Dali às margens do igarapé Rego Grande são 16 km de estrada poeirenta onde, em imagens justapostas, surgem terras florestadas, campos naturais, igarapés e rarefeitas casas cercadas por pastos. Tudo abrasado pelo sol impiedoso daquela região, que deixa o tempo ainda mais úmido e mormacento.
Depois de cerca de vinte e cinco minutos de viagem, de longe avistei uma casa que serve como ponto de apoio e manutenção do Parque Arqueológico do Solstício. O enigma se instala a partir de uma porteira. Ela se abre para uma paisagem em contraluz e cada vez mais vasta, mais imponente, na qual aos poucos se distingue, encimando um morro, um enorme círculo de pedras.
Em um diâmetro de 30 m estão distribuídos 147 blocos de granito, alguns com 4 m de altura, pesando até 5 toneladas. Percebe-se logo que não se trata de algo natural, mas de uma formação que se sobressai na paisagem construída por mãos humanas naquela região de planície.
O círculo de Calçoene foi apelidado de “Stonehenge do Amapá”, numa referência à Stonehenge, na Inglaterra. Seu garrafinha, me disse que descobriu o sítio arqueológico por acaso, no início de 1964. Ele morava naquela região e estava atrás de uma raposa que havia matado e carregado um dos seus patos para longe.
Ele seguiu as pegadas da raposa e viu que elas desapareciam em determinado ponto abruptamente. Desconfiado, começou a revirar o solo e, debaixo de algumas pedras, encontrou uma formação estranha. Ao começar a cavar, percebeu que se tratava da entrada de uma caverna que ficava sob a colina. Lá embaixo encontrou ossadas bem conservadas, arcos, jarros, um cocá indígena, braceletes, cordões daquilo que supôs ser de ouro, dentre outros objetos bem conservados.
Enfim tratava-se de um achado arqueológico que apenas iniciava uma série de pesquisas, estudos, e indagações, a maioria delas nunca respondidas. A região é cheia de mistérios, e muitas perguntas ainda permanecem, tais como: Que povo era aquele? O que representava aquela disposição de pedras? De onde essas pedras vieram? Como foram transportadas até ali? São questionamentos que ainda não foram plenamente compreendidos.
Existe alguma coisa que vai além dessa descoberta. É a psicologia do lugar. Imponente em seu profundo silêncio, sobretudo ao entardecer, quando as sombras das pedras milenares se alongam. O final do dia na floresta amazônica ameaça não acabar nunca naquela explosão de cores aquareladas. Só que, de repente, como num apagar de luz, a escuridão.
E uma miríade de estrelas faiscantes começa a iluminar a noite. É quando um mundo de histórias “fantasmagóricas” se alinha à descoberta, pois o lugar tem fama de mal-assombrado. São narrativas insólitas, malucas e surrealistas. Garrafinha conta uma bem boa:
“Uma vez, logo depois que encontrei o sítio arqueológico, um cara tirou do local um vaso cerâmico e levou para dentro de sua casa. A partir desse dia, toda noite, ele acordava levando pancada na cabeça de “não sei quem”. Só depois de tanto tabefe é que alguém juntou o fato com o roubo da cerâmica. Então, ele recolocou o pote no mesmo lugar do círculo e, a partir desse dia, nunca mais apanhou da assombração”, mas foi embora da região para nunca mais voltar.
Seu Garrafinha conta ainda muitos outros causos de “visagens” e “assombrações”. Contaram-me sobre uma luz vermelha que todo início de noite vem do céu direto para o centro do círculo de pedras, e depois de materializa em forma de labaredas que aparentam serem “velas vermelhas”, que flutuam e vão em direção ao rio, até desaparecerem.
Ele garante que isso acontece todos os dias, durante o período do solstício. Claro que eu não procurei ficar até o anoitecer para constatar a veracidade dessa “estória” (Kkkkk). Além disso, me contou sobre ruídos estranhos por aquelas bandas e aparições de guerreiros vestidos com seus cocás e usando seus arcos.
Enfim, é interessante esse repertório, pois eles são outra maneira de explicar a magia daquele local, de dar sentidos para aquelas pedras misteriosamente dispostas, de manifestar a riqueza cultural e antropológica dos costumes daquela região.
O Seu Garrafinha continua vivendo naquele parque. E me disse que carrega no sangue o legado daquele povo. Ele garante que aquela região é protegida pelos espíritos dos seus ancestrais. Com todas as dificuldades, ele realiza a capina do local, a limpeza periódica dos megalitos e a proteção daquela região.
Tem inúmeras histórias e “estórias” para compartilhar, sempre em tom de descontração e simplicidade de um homem que carrega consigo o amor pela história de uma região de tamanha importância científica, mas que não vem recebendo o devido cuidado e atenção dos entes públicos. Ao visitar Calçoene, não deixe de conhecer o Parque Arqueológico do Solstício.
Boa parte da população do Amapá sequer sabe da existência desse parque arqueológico, mas o Seu Garrafinha continua lá, firme, dedicado, como cuidador dos resquícios de um povo e de uma história que resistem ao tempo e ainda tem muito a revelar.