Ser corpo – ou os vinte gramas que nos escapam

Ilustração: Tami Martins
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O corpo humano é a matéria mais leve do mundo, a mais flexível. E tão bonito que é representado há milhares de anos em todas as plataformas possíveis: na rocha fria de uma caverna, esculpido no mármore, nos afrescos, na fotografia, nas experimentações sensoriais. O corpo é nosso melhor brinquedo.

Certa vez vi um jovem de uns 120 quilos, mais ou menos, jogando capoeira. Ele voava em saltos mortais e algumas vezes dava a impressão de que parava no ar como se fosse Dadá Maravilha ou um beija-flor. Mas pesava 120 quilos! Mil e duzentos gramas distribuídos em um corpo redondo, mas com a leveza, a beleza e a força estética de um magérrimo bailarino do Bolshoi.

A escrita leve do corpo narrando suas pequenas (e quase imperceptíveis) histórias cotidianas, particulares.

O corpo é o lugar do desejo. Nossa cápsula do tempo, que guarda objetos, cenas, sons, cheiros, nas entranhas (vãos) do cérebro, protegidos por uma senha gerada pelo sistema nervoso. Que é acionada nem sempre quando queremos, mas quando o corpo necessita.

O desenho do corpo. Linhas que se curvam, contornos que se insinuam. Texturas que se oferecem ao olhar ou ao toque mais íntimo. O desejo do corpo. De andar nu, de ter os peitos caídos, as mãos enrugadas, o falo adormecido, a cor que a melanina ou a falta dela lhe imprime.

O corpo se adapta às suas dores, se molda ao amor. Expande-se, supera o sofrimento. O corpo só é pesado quando lhe tiram a essência de sua leveza: a liberdade.

O corpo nosso parece outra pessoa. Vamos para um lado e ele se entorta para o outro.

Aí chega o dia em que, enfim, nos vemos. Não dentro de uma combinação de roupas e acessórios, mas como o piloto de uma máquina precisa, quase autônoma.

Qual a relação que você tem com seu corpo? A pergunta incomoda, alguns, como uma leve bursite.

E quando o que incomoda vem de fora e fica na superfície da pele? Transpassa-a sem tocá-la e chega à cara, que enrubesce ou fica pálida, enruga ou sorri satisfeita?

Preconceito, Botox, amor, alegria, tesão, medo, incompreensão. Tudo cabe no corpo. Tudo reflete na parte convexa do olhar, de onde sai o “o feixe do raio que controla a onda cerebral (Lenine)…”, que nos faz cair quietos, boquiabertos diante da beleza do corpo ou de seus sinuosos interesses.

No corpo cabe nitrogênio, potássio, enxofre, carbono, consciência.

O corpo passa a ser um grito, uma vociferação, um discurso escrito na pele da cidade, na consciência dos corpos transeuntes. O corpo tem 20 gramas a mais. O peso da alma.

O corpo de Nelson Mandela ficou 20 gramas mais leve e o mundo ficou menos segregacionista

Para alguns o corpo é uma jaula de ossos, carne e sangue onde a alma é obrigada a morar até chegar ao ponto de maturidade plena em que ela vai embora.

O corpo vira outra matéria.

 

Manoel do Vale

Seles Nafes
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