Crônica do Dia das Mães: Vida que segue

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Num tempo em que eu ainda era pequeno, tinha um medo terrível dos velhos e também do que poderia haver debaixo da minha cama. Mas eu estava apenas me acostumando ao mundo subjetivo que as pessoas criam em torno de nós para controlar nossos desejos, como o de ficar na rua, nas brincadeiras de moleque. “Não pode, porque o velho passa por aqui a essa hora ele te pega e leva embora”. Ou de ficar esquecido das obrigações debaixo da cama, desenhando ou lendo alguma historinha enquanto todo mundo achava que eu estava na escola. “Eu vi uma coisa se mexendo debaixo da tua cama, cuidado, pode ser uma alma penada. Elas gostam de morar debaixo das camas”.

Quem me enfiava essas coisas na cabeça a ponto delas penetrarem no lado mais medroso do meu coração era minha tia Terezinha, a algoz oficial da família. Cabia a ela ministrar os castigos à meninada e nos arrancar os dentes moles.

Eu vi uma coisa se mexendo debaixo da tua cama, cuidado, pode ser uma alma penada. Elas gostam de morar debaixo das camas”

Eu vi uma coisa se mexendo debaixo da tua cama, cuidado, pode ser uma alma penada. Elas gostam de morar debaixo das camas”

Naquela época meus heróis eram na maioria guerreiros e soldados, a quem era permitido matar pessoas e destruir metade de uma cidade para defender a “liberdade” e sua bandeira vermelha e azul com estrelas, contra os inimigos que moravam num pântano escuro e fedorento. Meu único herói de paz, não era de plástico ou de tinta impressa em papel. Era uma senhora de estatura mediana, cabeleira preta sedosa e incrivelmente perfumada. Uma magra e muito discreta, de passos miúdos e silenciosos. Uma guerreira.

Era neta de índios e se chamava Inoi. E era também Maria e tinha sobrenome de português, Barbosa, como muitas mulheres nesse lado do país onde ainda balançam selvagens as verdes folhas da esperança. Foi quem me deu à luz desse mundo vasto mundo.

Minha mãe era um ser encantado. Dela se desprendia o cheiro das ervas (paticholi, priprioca, capim santo), que, misturados a sua essência, compunham um perfume único, de propriedades terapêuticas, que nenhuma farmácia ou boticário irá conseguir sintetizar um dia.

Cheiro de mãe. Colo de mãe que acalma, dá coragem para pisar firme no mundo dos encantados, dessa misteriosa Amazônia, tão cheia de contradições.

Uma cabocla a quem o pouco da vida era uma dádiva imensa de Deus. Criativa no desconstruir das palavras, de dar-lhes outra semântica.

Dela herdei o gosto pela leitura e de construir narrativas. Poucas vezes a vi ler, sempre enfiada em sua máquina de costura movida a pedal me enchendo de orgulho com as roupas exclusivas que costurava pra mim. Costureira de mão cheia. Cidadã de mãos vazias de qualquer adorno de valor que cosia à mão as roupas do vice-governador do Pará.

"Poucas vezes a vi ler, sempre enfiada em sua máquina de costura movida a pedal..."

“Poucas vezes a vi ler, sempre enfiada em sua máquina de costura movida a pedal…”

Não tenho qualquer imagem de minha mãe. Só a fotografei uma mísera vez, e num golpe de sorte, pois ficava por demais arisca quando sentia uma câmera fotográfica por perto. A foto ficou meio borrada, mas deu certo. Dei a uma tia.

Poucas vezes escrevi sobre ela. Mas este ano em que novamente tem Dia das Mães, e no qual ficarei órfão de alguns amigos, namorada – Em suma: sozinho, resolvi prestar essa homenagem a Dona Inoi e todas as pessoas cujas mães já migraram para aquele lugar tranquilo lá no céu, onde elas ficam a coser suas conversas com a mãe de Deus. Porque, se Deus existe, ele tem mãe.

Seles Nafes
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