Curiaú: “festa de aparelhagem passou por cima da tradição”, diz morador

Eventos não ligados as festividades estão suspensos. Associação de moradores defende mediação entre os dois segmentos da vila
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JÚLIO MIRAGAIA

Mais de nove meses após a decisão da Justiça do Amapá em suspender por tempo indeterminado festas de aparelhagens no quilombo do Curiaú, localizado a 8 quilômetros de Macapá, a comunidade ainda se sente ameaçada com a volta do entretenimento popular que, segundo eles, trouxe uma série de problemas sociais nos últimos anos.

A sensação de que as festas podem voltar a qualquer momento existe porque o processo ainda se desdobra nos tribunais.

Seu Carolina é morador da vila desde que nasceu. Para ele, grandes festas trouxeram problemas que não haviam. Fotos: Júlio Miragaia

Seu Carolina é morador da vila desde que nasceu. Para ele, as grandes festas trouxeram problemas que não haviam. Fotos: Júlio Miragaia

Os moradores alegam que as grandes festas com aparelhagens de som trouxeram poluição sonora, poluição do meio ambiente, insegurança, aumento da criminalidade que é praticada por pessoas que vem de fora, prostituição, jovens consumindo bebidas e drogas, dentre outros problemas.

O casal Joaquim Araújo da Paixão, de 74 anos, e Raimunda Leite da Paixão, também de 74 anos, sempre morou no quilombo. Joaquim é conhecido na comunidade como “Seu Carolina”, e foi um dos primeiros líderes comunitário da região. Ele organiza a Festividade de São Joaquim há mais de 50 anos. O casal criou em 54 anos de relacionamento dez filhos na vila do Curiaú de Fora, trabalhando com agricultura. Seu Carolina vê como péssima a ideia de tentar trazer de volta as festas de aparelhagem ao local.

Dona Raimunda: durante festas, moradores são impedidos por seguranças de andarem na rua da própria casa

Dona Raimunda: durante festas, moradores são impedidos por seguranças de andarem na rua da própria casa

“O que eu me chateio, e eu disse pro juiz, é que as pessoas que estão fazendo o Curiaú de corruptela são todos funcionários públicos que não tem necessidade de fazer. Ao invés de trazer poluição sonora poderia trazer comércios, chamava a comunidade, se tem alguém pra trabalhar, coloca ele pra trabalhar, é isso que eles deveriam fazer e não colocar poluição sonora aqui dentro”, desabafou Joaquim Araújo da Paixão.

Ele recorda com tristeza de um momento, no ano de 2012, em que as festas de aparelhagem, segundo ele, desrespeitaram as festividades tradicionais da comunidade e até mesmo o padroeiro.

“Em 2012, realizamos a festividade que fazemos de dois em dois anos, saímos na procissão e, de repente, três carretas de som de Belém do Pará foram lá pro Seu Gorgia. O padroeiro da comunidade foi desrespeitado e isso está engatado aqui na minha garganta. Foi muito triste para nós, passaram por cima de uma tradição”, lamentou.

Festas com aparelhagens em comemorações tradicionais não são incomuns, mas em casos como o Curiaú, elas causam mal estar em parte dos moradores. Foto: arquivo/SELESNAFES.COM

Festas com aparelhagens em comemorações tradicionais não são incomuns, mas em casos como o do Curiaú, elas causam mal estar em parte dos moradores. Foto: arquivo/SELESNAFES.COM

Em junho de 2016, os dois segmentos da comunidade, os realizadores de festas com aparelhagens e os moradores favoráveis apenas aos festejos tradicionais, foram chamados na Justiça para uma conciliação. Como resultado, foram proibidas as festas na comunidade, com exceção das festividades tradicionais.

“Foi um alívio para todo mundo porque é um exagero, festa todo dia, aquele som alto. O Curiaú tem a sua cultura, tem o seu valor, o batuque, o Marabaixo de Santa Maria… Festividade de Santa Maria em Maio, São Joaquim em agosto. Durante as festividades, eles tentam fazer suas festas atravessando a programação. Com isso, a festa da tradição se mistura com a festança deles, o que é triste”, diz Seu Carolina.

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Vila do Curiaú. Foto: André Silva

Dona Raimunda relata que até durante velório ocorreram festas. O maior constrangimento, segundo ela, é quando os moradores do quilombo são impedidos de transitar na vila durante uma festa. 

“Ano passado, três vezes, antes de maio, em março e em abril, foi fechado aqui. Teve uma filha minha que ficou muito chateada. Ela veio deixar a irmã dela e o segurança de uma festa não queria que elas passassem. Eles não deixam passar. Tem que revistar”, recordou.

Associação de moradores defende conciliação entre aparelhagens e festas tradicionais

A presidente da Associação de Moradores do Quilombo do Curiaú, Rosa da Costa Ramos, defende um equilíbrio entre os dois segmentos da comunidade. Para ela, o problema central das festas de aparelhagem era a forma como elas estavam sendo realizadas

“Eles (os moradores) têm razão, pois da forma como estava se dando a coisa, essas festas na comunidade ocorriam de uma forma prejudicial, só que hoje a associação está tentando encontrar um meio termo pra isso”, explicou.

Rosa Ramos:

Rosa Ramos: busca por equilíbrio entre festas e tradição em favor da comunidade. Foto: André Silva

Rosa Ramos opina que as festas que atraem pessoas de fora da comunidade não ligadas à tradição acabam sendo uma fonte de geração de renda para alguns moradores. A líder comunitária cita como exemplo os ambulantes, seguranças, catadores de latinha e comerciantes que têm uma oportunidade extra de ganhar dinheiro durante os eventos.

“Então nessa polêmica o que nós precisamos encontrar é um meio termo, uma organização, nós temos que disciplinar esses eventos na comunidade. E é isso hoje o que a associação está conseguindo fazer”, destacou.

O modelo de festas pensado pela associação para mediar os problemas é que as grandes aparelhagens não estejam mais nas festas, mas sim aparelhagens de pequeno porte. Além disso, os eventos teriam horário para início e término, obedecendo a legislação ambiental.

Rodovia do Curiaú. Assaltos e acidentes tiram o sossego de moradores. Fotos: Júlio Miragaia

Rodovia do Curiaú. Assaltos e acidentes tiram o sossego de moradores. Fotos: Júlio Miragaia

O processo judicial que trata da poluição sonora na comunidade do Curiaú ainda não foi a julgamento. De acordo com Rosa Ramos, ele tramita há mais de 12 anos. Enquanto não há uma definição judicial, a associação propõe um calendário para disciplinar os eventos.

“Nós reunimos com quem faz a festa tradicional e nós construímos juntos, coletivamente, um calendário, por exemplo, na festa de São Joaquim. De acordo com o calendário eles teriam três eventos durante o ano pra angariar recursos, as mesma coisa as outras festas. O que essa associação está tentando hoje é encontrar um ponto de equilíbrio pra essa situação. Existe uma geração de renda e existe a perturbação do sossego. Nós somos contrários a paralisação total”, concluiu.

Mais de uma década de festas e problemas sociais estão mudando a cara do Curiaú

Enquanto a questão não se resolve legalmente, o resultado de pouco mais de uma década são apresentados para quem anda pela comunidade.

Na rodovia, o lixo despejado indevidamente por quem passa pela vila e trata uma área de proteção como um lugar qualquer também mostra que há pouco ou nenhuma consciência ambiental dos visitantes ou dos que transitam pelo lugar.

Lixo despejado na rodovia

Lixo despejado na rodovia

Campo de futebol tomado pelo mato

Campo de futebol tomado pelo mato

Os relatos sobre assaltos, furtos e outros crimes, também são parte do processo de mudança que a área tem sofrido.

Para moradores como Seu Carolina e Dona Raimunda, a única saída possível para o impasse sobre a realização das festas e as consequências que as mesmas trouxeram em mais de dez anos parece ser o respeito aos ritos do quilombo e a garantia de que os mais jovens não estejam expostos aos riscos colocados durante a realização dos eventos de grande porte.

Entrada da vila

Entrada da vila

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