São Tiago e os tempos do cólera

Festividade em Mazagão é parte de "mosaico multicultural" presente em território latino-americano
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MARCO ANTÔNIO P. COSTA

Hoje é o dia de São Tiago, padroeiro católico da cidade de Mazagão que fica há 36 km de Macapá. Cidade natal do papai, trata-se de uma das mais antigas do nosso estado, fundada por um um núcleo de mais de mil pessoas oriundas das colônias portuguesas na África.

Na verdade, uma cidade inteira atravessou o atlântico com senhores e escravos da Mazagão africana para o hoje Mazagão amapaense. Vieram fugindo das guerras nada santas entre cristãos e muçulmanos. Conta-se que ao chegarem por aqui ficaram nas embarcações enquanto a Vila e suas casas eram construídas e aí começaram a enfrentar toda a sorte de pragas e do cólera que devastou boa parte da população.

Os que não morreram e nem foram embora da “terra grande” para as Ilhas ou Belém, criaram a tradição de encenar a guerra entre mouros e cristãos, donde Tiago seria um soldado cristão que fora decisivo nas batalhas.

É uma festa bonita, cheia de cores marroquinas e açoreanas. Por óbvio, predominantemente católica, com rezas e ladainhas, mas com algum sincretismo. Tudo isso aconteceu pelos idos de 1770 e dato para dizer que a época das pestes não parou por aí.

Batalha entre mouros e cristãos é lembrada na Festa de São Tiago, em Mazagão Velho. Foto: arquivo/Secom

Há uma ‘broma’ popular, provavelmente verídica mesmo que com alguma corruptela, que conta que um dos governadores interventores vindos do centro-sul da época da ditadura, um esclerosado da segunda guerra, um dia foi visitar Mazagão pela primeira vez.

Embasbacado pela pobreza e falta de estrutura ao ser perguntado por um jornalista: “governador, é a primeira vez que o senhor visita Mazagão?” respondeu: “não, última!”, emendando uma resposta na pergunta seguinte se iria também visitar Mazagão Velho, com a pérola: “tem um ainda mais velho do que esse?”.

Cavalos como esse governaram e, outros tipos de cavalos seguem governando nosso estado. A broma anterior, a do cavalo da ditadura, ocorreu um dia desses, na década de 70 do século XX. Foi mais ou menos quando começou-se a desenvolver a cultura e a brincadeira de que Mazagão seria a terra da conserva.

Por ‘conserva’ entenda-se carne bovina em conserva, algo tão, mas tão comum em nossa região que é difícil encontrar um adulto de meia idade como eu que não goste de tal produto. Na verdade, a conserva que eu não vi e nem encontrei em outras regiões do país, foi uma alternativa à falta de estrutura, à falta de energia elétrica principalmente, e ainda é algo que encontramos em qualquer bodega da cidade e principalmente do interior do estado.

Isolamento geográfico que durou anos em Mazagão pode ser comparado com as cidades solitárias dos romances de Gabriel García Márquez. Foto: Júlio Miragaia

Penso que caso tivéssemos um gênio como García Márquez, este poderia muito bem encontrar um Florentino Ariza ou Firmina Daza na Mazagão destes tempos atuais sem ter que recorrer a cenários do século XIX. Este mês mesmo, boa parte do estado ficou quase um quarto dos seus dias sem água em casa. Esse é nosso romance de época, nosso realismo fantástico.

Hoje chegou o asfalto e não temos mais o cólera propriamente dito, mas a doença da terra que não muda segue sendo a enfermidade crônica não apenas de Mazagão, mas de centenas e centenas de pequenas cidades amazônicas.

De todo modo, as cores da festa e do povo seguem sendo a esperança de que um dia tenhamos finais felizes. Viva Mazagão!

Foto de capa: Marcelo Loureiro (Secom)

Seles Nafes
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