Por GESIEL OLIVEIRA
Todo mundo já ouviu falar sobre a história do Naufrágio do Barco Novo Amapá, mas quase ninguém conhece as histórias que naufragaram junto com ele. Hoje quero compartilhar com vocês um pouco sobre uma destas tantas. A história de amor que aquele naufrágio levou junto.
Estavam naquele barco o casal Odivaldo Ferreira de Souza (mais conhecido como Tio Filho) e Célia Lúcia O. Monteiro, uma maranhense que a época residia em Beiradão, atual município de Laranjal do Jari.
Ele trabalhava na empresa Jari Celulose, sexto filho de uma família de 9 irmãos, filhos da Dona Maria Lindalva Ferreira de Souza (hoje com 90 anos) e Seu Paulo Coutinho de Souza (87) que até hoje moram na Avenida Marcílio Dias, no Bairro do Laguinho.
Eu tinha apenas 3 anos de idade à época do fato. O Barco Novo Amapá partiu as 14h do dia 06 de janeiro de 1981 rumo ao Vale do Jari. A tragédia aconteceu por volta das 20h daquele dia na altura da desembocadura do Rio Cajari.
O Tio Filho era um cidadão trabalhador, sempre com um sorriso nos lábios, sempre disposto a ajudar o próximo. Era evangélico, gostava de pregar a Palavra de Deus. Na época era já era obreiro da igreja.
Onde ele chegava trazia consigo uma alegria contagiante. Ele havia conseguido um emprego em uma empresa ligada a Jari Florestal. Estava de passagem em Macapá, passando as festividades de fim de ano com sua esposa, a Tia Célia, evangélica, que estava grávida de 6 meses.
Tio Filho trouxe a sua esposa para apresentar à sua família em Macapá. Foram dias de muita alegria. Eles estavam voltando do Maranhão, pois Filho acabara de conhecer a família de sua esposa.
Um casal no auge do amor, felizes, “grávidos”, eles ainda não sabiam se seria um menino ou uma menina. Estavam retornando para sua casa em Beiradão para os preparativos antes da chegada do bebê. O irmão mais velho de Tio Filho, chamado de Orlando Ferreira de Souza, hoje com 59 anos, estava de passagem comprada para embarcar com eles.
Contudo, no dia anterior, Orlando ficou sabendo, após um exame, que estava com malária, e em cima da hora desistiu da viagem. Ele conta que o mesmo táxi que o levou até a casa de sua mãe foi o mesmo táxi que seguiu viagem e levou Tio Filho e sua esposa grávida até o Porto do Santana.
No período em que o Tio Filho esteve aqui tiramos algumas poucas fotos que nossa família guarda como relíquias, pois registram os últimos momentos dele em vida. Aquela noite do dia 06/01/1981 nunca acabou para as famílias das vítimas, mesmo 38 anos depois. Com a desistência de Orlando Ferreira, sua irmã mais nova, Maria do Socorro Ferreira, que hoje mora no Bairro Novo Horizonte, também desistiu de embarcar. O destino já havia traçado sua rota. A embarcação feita para comportar 250 pessoas estava com cerca de 600.
Alguns especialistas afirmam que o peso excessivo causou um desequilíbrio estrutural no controle de flutuação da embarcação. Na altura do Rio Cajari, a cerca de um terço da viagem, por motivos até hoje controversos e desconhecidos, a embarcação emborcou, virou nas águas do Rio Amazonas, em uma noite muito escura.
O desespero tomou conta das centenas de pessoas a bordo. Gritos, pessoas presas nos camarotes, a embarcação virou com sua quilha para cima formando um bolsão de ar que sustentava o barco virado, mas dentro do bolsão de ar muitas pessoas batiam pedindo socorro.
Algumas pessoas nadaram para dentro do rio, achando que estavam nadando para a beirada e morreram de exaustão.
O livro “Morte sobre as águas: A tragédia do Cajari”, escrito pelo ex-governador João Capiberibe relata que:
“A notícia chegou a Macapá no fim da tarde do dia 07 de janeiro de 1981. O barco Novo Amapá, que deixara o Porto de Santana no dia 06/01/1981 (terça-feira), naufragara nas imediações da foz do Rio Cajari após 6 horas de viagem. As primeiras informações trazidas por dois sobreviventes davam como certa a morte de 23 das 146 pessoas que o despachante Osvaldo Nazaré Colares informara à Capitania dos Portos do Amapá.
No dia seguinte (quarta feira), porém, a verdadeira extensão da tragédia delineou-se aos olhos da população de Macapá. Das mais de 600 pessoas que, na verdade, viajavam no barco sinistrado, apenas metade, sobrevivera ao acidente”.
Na página 35 do livro, o relato de um sobrevivente, Sr José Maria da Silva, empregado da EMPRAL, empreiteira Jari, descreve o momento do desespero: “as mães que estavam morrendo afogadas pediam socorro! Pelo amor de Deus, que as ajudassem, mas todos gritavam ao mesmo tempo”.
Entre dezenas de relatos de sobreviventes, há um que descreve a calma de uma mulher grávida que morreu abraçada com seu marido. Pergunto-me até hoje se seriam os meus tios. Quem os conhecia sabia que seria impossível outro desfecho.
Cada barco que chegava com os sobreviventes, nos dias que se seguiram, era um desespero dos familiares na beirada do porto de Santana. Gritos de felicidade se misturavam a gritos de desespero.
No domingo chegaram as duas últimas balsas com todos os corpos em decomposição. Acabaram ali as esperanças da minha família em encontrar meus tios com vida. Uma nuvem de urubus de longe se avistava. Uma cena aterrorizante que até hoje atormenta muitas famílias. Era impossível reconhecer os corpos que foram enterrados em valas coletivas no cemitério de Santana.
A irresponsabilidade que até hoje nunca teve um desfecho, interrompeu muitas histórias, inclusive a história de amor dos meus tios. Tia Célia teria a criança em maio, no mesmo mês que nasceu minha irmã Gilcilene de Souza Oliveira.
Mas essa história foi interrompida, sonhos, projetos, uma família inteira deixou de existir e junto nas águas turvas do Rio Amazonas levou uma parte da nossa felicidade também. Hoje, quem sabe, ele seria um pastor, quem sabe hoje minha prima teria uma família, e meus tios teriam a felicidade de serem avós, mas nunca tiveram essa chance.
Hoje, só resta um quadro em preto e branco na parede da casa da vovó e muita saudade daquele casal apaixonado. Nossa família não teve a oportunidade sequer de dar um enterro digno a eles, hoje não temos um lugar exato para irmos no Dia dos Finados, a não ser uma vala coletiva.
Mas o que me conforta é imaginar que eles passaram para a outra vida abraçados, na firmeza do verdadeiro amor que os unia. Juntos, sempre juntos para toda eternidade! Por isso sempre digo que muita gente conhece a história do Novo Amapá, mas não conhece as histórias que naufragaram com ele.