Literatura amapaense deveria estar no currículo escolar, diz Carla Nobre

Poetisa e professora é a quarta entrevistada de série sobre escritores locais
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JÚLIO MIRAGAIA

Fotos e vídeo: NATHAN ZAHLOUTH

A série “Literatura do Amapá” retorna entrevistando a poetisa Carla Nobre. A equipe do portal SelesNafes.com foi recebida pela autora no dia 23 de fevereiro, em sua casa no bairro Zerão, na zona sul da capital.

Em meio ao seu florido quintal, a escritora falou sobre sua obra, trajetória e a importância da literatura no currículo escolar. Confira. 

Como a literatura entrou na sua vida?

Desde sempre, na verdade, eu tive uma facilidade muito grande pra ser leitora. E isso me aproximou muito da literatura no ensino fundamental. Eu lembro que a professora mandava a gente fazer cópias dos textos e eu me divertia lendo as histórias. E, a medida que eu copiava, lia também. Isso é uma coisa que eu resgato no meu trabalho como professora hoje. Acho importante.

E o que lia?

Os livros didáticos, infelizmente, trazem apenas trechos. Mas eu lembro que eu lia trechos de Alice no País das Maravilhas, das fábulas do Monteiro Lobato, trechos das falas da Narizinho, então tudo isso foi  estimulando também a minha leitura. E ao longo da minha trajetória como aluna, eu fui uma leitora. Sempre tive carteira de biblioteca, sempre emprestei livros, não por indicação dos professores, infelizmente, mais pela minha vontade de ler.

Escritora conta que começou organizar produção após sofrer acidente

Foi aí que eu conheci uma das autoras que eu adoro, que é a Lygia Bojunga, que é uma autora de livros infanto-juvenis maravilhosos. Eu acho que ela é a única brasileira que ganhou um prêmio importantíssimo que é o Hans Christian Andersen, que é a medalha de textos infantis. Essa autora me estimulou muito durante toda a entrada na adolescência.

Já adolescente, evidentemente, fui tomando mais contato com a poesia. Tinha um poeta que eu fui conhecer já na faculdade, que era o poeta das mocinhas, mas eu fui ler quando eu era adolescente. Nem sabia, eu achava bonita aquela coleção que tinha na escola, no CCA [antigo Colégio Comercial do Amapá, hoje Gabriel de Almeida Café], uma coleção vermelha de letras douradas. O autor se chama J. G. de Araújo Jorge, eu lia todos os poemas desse autor. Eu adorava ler, passar as tardes lendo, eu decorava isso.

Em performance com o grupo “Abeporá das Palavras, em 2011. Foto: arquivo pessoal

E quando iniciou a escrita?

A minha memória de quando eu realmente começo a organizar os meus textos é quando eu sofro um acidente. Tenho que passar muito tempo sentada, deitada. Eu tenho um problema sério no pé, e isso me estimulou a organizar os meus textos. Eu escrevia antes, sempre tive meu diário, sempre escrevi poemas, mas neste período comecei a organizar e comecei a me enxergar um pouco como escritora porque aí você também vai percebendo isso aos poucos.

Hoje, já estou no meu terceiro livro publicado e já digo que eu sou uma poeta, sou uma escritora, tenho premiações em contos e crônicas, mas essa contínua relação entre escritora e leitora foi sempre existindo e a minha memória mesmo de quando eu começo é de quando eu já sou escritora, adulta, mãe, e sofro um acidente. Tinha 21 anos

Escritora falou com equipe do SN, em fevereiro

Em 2007 foi o primeiro livro que eu lancei, “Sobre o adeus e o encelado de Saturno”, e eu costumo demarcar a partir desse período a minha trajetória como escritora.

Por que escrever e ler poesia hoje?

O tema em si da pergunta já é um tema importantíssimo, porque a literatura é algo que devia ser um direito nosso. Porque é nela que se encontram sonhos, os desejos, as nossas projeções, de futuro e de pessoas, de caráter. Então, infelizmente, ela não é um direito porque poucos têm acesso.

Eu digo poucos porque, você vê, eu disse ainda há pouco que a minha experiência como leitora enquanto eu era estudante era pequena e através dos livros didáticos. E os livros didáticos trazem trechos. Isso dificulta conhecer o texto como um todo.

Com Fernando Canto, no lançamento de “Sobre o adeus e o encelado de Saturno”. Foto: arquivo pessoal

A importância da poesia, da literatura como um todo hoje, é fundamental para que as pessoas possam sair desse sufoco que o dia a dia representa. Também desconectar literalmente das tecnologias e poder se abraçar com personagens, encantamentos, com mundos maravilhosos e trazer esses mundos para dentro de você, fazer com que seu cotidiano possa ter esse universo de encantamento, que só a literatura pode proporcionar. E nisso, a poesia é maravilhosa porque ela é a subjetividade maior.

O texto em prosa é super importante, as novelas televisivas são importantíssimas, os filmes, todos esses são textos literários que estão aí embutidos. Mas o poema é a possibilidade de viajar realmente no texto, de conhecer realmente mundos que você não tem acesso por meio do objetivo, do real. E a poesia te dá essa saída para encontrar soluções que não estão ali postas de imediato, mas elas tem que ser fruto de uma reflexão interna, fruto do que você pensa sobre o mundo.

Com o poeta paraense Antonio Juraci Siqueira. Foto: arquivo pessoal

Por que tratar e militar pela literatura da Amazônia?

Eu sempre procuro dizer que eu sou poeta da Amazônia, não porque eu procuro demarcar um lugar único pra mim, mas porque eu acho importante a Amazônia. É um lugar fraco em editoras. Nós temos uma grande feira literária dentro da Amazônia, que é a Pan-Amazônica do Livro, do Pará. Aqui no Amapá, nós temos eu acho que quatro livrarias e você não consegue ter um número vasto de títulos, editoras. Você consegue ter uma editora, mas naquele nível bastante artesanal porque não são realmente editoras. As gráficas até utilizam esse selo pra que possam ter alguns descontos de imposto de renda. Enfim, mas elas não atuam nessa área. Então militar como escritor da Amazônia é buscar dar visibilidade a um grupo marginal que está fazendo, que tem talento, porque nós temos autores da Amazônia premiadíssimos, e militar nessa área é poder dizer que aqui a gente respeita o que está fazendo.

No Amapá, por exemplo, nós temos o Fernando Canto, que pra mim é um dos melhores autores que nós temos aqui. Ele vai no conto, no poema, e é um autor premiado. É um autor que deveria ter mais visibilidade. O Mauro Guilherme e o Fernando Canto lançaram agora dois livros excelentes, que trazem o fantástico dentro das suas temáticas. Cada um dentro do que gosta de escrever, mas você olhando aqueles textos numa análise literária, eu sou professora de teoria da literatura, você percebe o alto nível dos dois e não tem visibilidade. Não há espaço para a leitura desses textos e isso é grave.

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Então é importante que a gente possa estar buscando espaços, abrindo fronteiras para mostrar realmente os talentos que nós temos produzidos aqui.

E nessa militância literária, o que anda fazendo no momento?

Estamos agora construindo um coletivo chamado Juremas, formado por seis escritoras, que irão fazer seus trabalhos em conjunto em 2019. É um coletivo de mulheres que pensa literatura, gosta de literatura e está escrevendo. E a gente gostou dessa simbologia de mulheres e estar junto e discutir porque um pouco a gente discute em cada esfera separadamente, mas a gente quer juntar as nossas discussões e trazer isso para o palco, com textos bem interessantes que eu acho que a sociedade amapaense irá gostar.

E como anda a literatura amapaense?

Eu acho que espaço é uma coisa que cada um tem que buscar o seu. Não é uma coisa que depende de governo nenhum e de ninguém. Outro dia, alguém me ligou, ‘ah, mas é você quem fez fulano, agora aguenta’. Eu não fiz ninguém, as pessoas se fazem. Elas encontram espaço e vão lá e acontecem e se você aconteceu é porque você tinha talento. Isso independe do gosto. Eu posso não gostar do texto de fulano, mas pode ter alguém que goste, então esse texto tem que ser respeitado.

Recital “Águias e Serpentes”. Foto: arquivo pessoal

Eu acho que o governo, a prefeitura de Macapá e de todos os municípios cometem um erro gravíssimo em não dar apoio para os escritores. Porque veja, o Rio de Janeiro pode até ser o Rio da violência, dos alagamentos, mas ele sempre vai ser o Rio da garota de Ipanema, e isso quem fez foi um poeta, um verso, uma música, então a literatura tem esse poder de dar toda essa visibilidade para um lugar e os nossos governantes aproveitam pouco essa visibilidade.

E eu falo isso quanto ao governo e a prefeituras como um todo, mas é grave também a forma de tratamento como os nossos legisladores, tanto os deputados, quanto os senadores, ninguém olha para a literatura, não vejo visibilidade, não vejo ninguém chamar um poeta para ir lá no seu gabinete para dizer, podemos fazer isso juntos. E coisas que não tem necessidade de dinheiro.

O governo, por exemplo, poderia instituir dentro do currículo escolar a literatura amapaense, comprar livro dos autores amapaenses que gastam o seu dinheiro para publicar e colocar dentro das escolas. Não estaria fazendo nenhum favor, estaria comprando um serviço e o escritor vendendo outro serviço.

Prêmio Missões, em 2006. Foto: arquivo pessoal

São coisas que precisam de pouco, mas ninguém faz, ninguém fala nada sobre isso. Eu acho isso grave, mas acho também que cada escritor escreve dentro do que é possível escrever e dentro do que é possível ele fazer com aquela escrita. Alguns publicam, alguns têm livro físico.

Eu tenho, por exemplo, dois amigos, os Poetas Azuis, Tiago e Pedro, que eles não têm um livro físico, mas eles publicam nos blogs, nos sites, e são grandes poetas, são grandes escritores, e isso para mim é um achado único, porque mostra que o Amapá tem talentos importantes.

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Infelizmente, não posso dizer que a gente tem aqui um grande premiado. Ninguém aqui ganhou um Jabuti. Ninguém ganhou um Nestlé. E ninguém ganhou isso porque as pessoas não tem incentivo pra ir buscar esses prêmios, não tem até mesmo uma formação pra ir buscar esses prêmios.

Você vê um Jabuti do ano passado de poesia, foi um autor como qualquer um de nós que está começando agora que falou sobre o sertão, num poema belíssimo, num livro que ele gastou para publicar. Pode ser qualquer um de nós, mas é preciso que a gente se atente, tenha mais estímulos, nós não temos assim, uma academia de letras que realmente discute, que realmente traz resultado, não temos um sindicato de escritores, ou uma associação que realmente abarque todo mundo, que dê um certificado de escritor, não temos isso. Não temos uma organização.

Eu também não vou ser responsável por isso, mas eu acho que quem perde somos todos nós. Agora, tem uma coisa que é fundamental, quem escreve, escreve porque quer. Se você está fazendo a sua parte, faça bem feito e o reconhecimento vai chegando.

Projeto desenvolvido em escola trabalhou literatura concreta e gírias locais

O que eu acho grave mesmo, quando eu ouço uma ou outra entrevista e aí um poeta vai lá e diz ‘ah eu ganhei o prêmio da editora tal’, essa editora você paga pra entrar nessa agenda, nesse livro, nesse prêmio. Eu acho isso grave, dizer que isso é importante. Importante é você ganhar um prêmio de instituição séria, com equipe editorial séria e que realmente ali tenha critérios a serem avaliados.

Enquanto não for isso eu escuto e fico na minha casa pensando o que é que a gente está fazendo da nossa literatura, porque nós temos talentos grandes e nós estamos sendo pouco aproveitados pelas políticas públicas. Espero que a gente possa encontrar um caminho cada vez melhor. Perdemos muitos avanços na literatura, mas eu penso que cada época tem o seu fazer. Então que venha uma nova época que a gente possa encontrar um caminho interessante pra se fazer.

Como professora, como trata a literatura na escola e na universidade?

Para mim, o texto literário tem uma importância enorme. Eu trabalho sempre com ele. Nós temos um projeto na escola estadual que é o “Bolsa de Xiita”,onde tem fichas de leituras muito interessantes que nós formulamos para preencher, a gente lê livros com eles. A leitura ocupa um espaço de importância como a escrita ocupa, a ortografia ocupa.

Carla Nobre prepara nova obra poética, focada no universo feminino

Se a ortográfica vale dez, a escrita vale dez, a leitura vale dez também. Dar esse espaço de importância para o ato de ler é fundamental dentro da escola e ainda que nos não tenhamos uma direção acerta da Secretaria de Educação para o currículo, para ter literatura amapaense, nós inserimos literatura amapaense dentro da escola no nosso planejamento anual por uma vontade das professoras.

Para nós, é muito importante isso e para mim é super importante. Ano passado, eu ganhei um prêmio como professora na etapa estadual, prêmio “Professores do Brasil”, onde pude ter a oportunidade de trabalhar com meus alunos a produção de poemas concretos, lemos muito Arnaldo Antunes, por exemplo, e trouxemos para dentro do universo do que a gente tem, dos nossos sabores, e os alunos produziram poemas concretos em torno de palavras como açaí, andiroba, tucupi, mandioca.

A gente visitou a feira do produtor, falou de cultura e falou de escrita. Então, eu trato a literatura dessa forma. E como professora universitária mais ainda porque dentro da Ueap, as disciplinas que eu trabalho são disciplinas de literatura mesmo para análise. Analisamos textos literários de autores amapaenses, inclusive o livro do Fernando Canto, “Mama Guga”, e do Mauro Guilherme, “Contos Estranhos”, teve uma turma que fez um trabalho belíssimo desses contos no semestre passado e para mim é sempre uma alegria trabalhar com os textos da literatura amapaense e trabalhar com textos da literatura porque cada vez mais eu vou aprendendo, a medida que eu ensino, aprendo e vou reestudando.

Organização da própria categoria e apoio são importantes para revelação de novos talentos

E a sua obra?

Tenho três livros publicados e estou com o quatro prontinho, vamos ver se sai esse ano. É um livro de poemas “A rainha do rio”, vão ser poemas trazendo o universo feminino, bem mais marcado e também trazendo várias fases da mulher. A gente fala muito do empoderamento feminino, mas a mulher também sofre, se atormenta também renasce, revive, transpira. Quero que “A rainha do rio” traga um pouco desses tons variados que é a mulher.

Considerações finais?

Da gente poder ter mais espaço para falar um pouco de literatura, discutir literatura,conhecer professores que levam as obras de autores amapaenses para as escolas, que você pode estar aí fazendo um trabalho belíssimo trazendo esse autor. Uma coisa é esperar que o governo faça algo, outra é ver o oque eu posso fazer, qual o meu papel. Acho que, se a gente puder conciliar o nosso papel e o papel do outro nessa troca permanente, é possível que a gente dê uma riqueza maior para a produção literária do Amapá e possa entrar na vanguarda. Ainda estamos a passos lentos, tendo autores sensacionais que podem mostrar o seu talento.

Em ensaio fotográfico com a obra “exageros e delicadezas”. Foto: arquivo pesosal

Perfil da escritora

Carla Nobre tem 43 anos, nasceu em Macapá. A família materna vem do município de Mazagão, a 32 quilômetros da capital. 

“É uma raiz que eu prezo muito, sempre que eu posso estou lá. Para mim, é muito importante isso”, diz a escritora.

Tem três filhos, é professora da rede estadual e também da Universidade do Estado do Amapá (Ueap). Mora no bairro Zerão há 20 anos.

É autora das seguintes obras: “Sobre o adeus e o enceládo de Saturno”; “O amor é urgente” e “Exageros e delicadezas”.

*Júlio Miragaia (Júlio Ricardo Silva de Araújo) é jornalista.

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