Por MARCO ANTÔNIO P. COSTA
Pela primeira vez no Brasil em um tribunal do júri, a Defensoria Pública utilizou do instituto do “custus vulnerabilis” (guardião dos vulneráveis) para auxiliar a defesa constituída em um julgamento. O fato ocorreu em Macapá, na quarta-feira (31), no julgamento de uma mulher que matou o marido alegando legítima defesa.
Por quatro votos a zero, o Conselho de Sentença da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Macapá absolveu Kesiane Ferreira de Almeida, de 26 anos. O caso transitou em julgado, já que as partes abdicaram dos seus prazos e não irão impetrar recursos.
O defensor público Luiz Gustavo do Nascimento Cardoso se preparou para o caso por alguns meses e, uma semana antes do júri, advogados se habilitaram para o julgamento.
Após visita à casa de Kesiane, no conjunto Macapaba, zona norte de Macapá, o defensor peticionou ao judiciário que pudesse auxiliar a defesa, sem prejuízo ao tempo devido aos advogados constituídos. Os advogados de defesa, Eider Rodrigues e Osni Brito, não se opuseram à intervenção da Defensoria Pública, tampouco o Ministério Público.
“Eu sabia que no dia 31 de julho esse caso iria ser julgado num contexto de muita vulnerabilidade. Honestamente, pensei que essa mulher e cidadã, além de se encontrar em situação de ameaça à sua liberdade, era uma verdadeira vítima de violência doméstica contínua e estrutural. Dessa forma, a atuação da Defensoria Pública, enquanto guardiã dos vulneráveis, impôs-se como forma de demonstrar que não temos uma ação exclusiva de gabinete, pois vamos até onde o povo está, é lá o nosso lugar”, declarou o defensor público.
As defensoras Juliana Rodrigues, Isabela Azevedo, Lívia Campos e outras, apesar de não terem participado da sustentação oral na defesa, foram parte da construção do argumento do defensor Luiz Gustavo, que atentou para o fato de que a compreensão de um ciclo de violência vivenciado por mulheres, poderia ser compreendido melhor se explicado por mulheres.
Relembre o caso
No dia 20 de agosto de 2017, um domingo, Kesiane Ferreira de Almeida foi agredida em sua residência, na Rua Cereja, Bairro Brasil Novo, na zona norte de Macapá. O agressor era o seu marido Eduardo de Souza da Conceição, que tinha 30 anos.
A agressão passou por alguns cômodos da casa e, ao chegar na cozinha depois de Eduardo engasgá-la por algum tempo e pressioná-la contra as paredes, Kesiane conseguiu alcançar uma faca de mesa e desferir um golpe no peito do esposo que acabou sendo letal. Eduardo ainda chegou a ser socorrido pelo Corpo de Bombeiros, mas não resistiu e acabou morrendo no Hospital de Emergências de Macapá.
Kesiane foi presa em flagrante e solta nos dias seguintes, na audiência de custódia. Ela só soube que Eduardo faleceu quando já estava detida e respondeu o processo em liberdade por não ter antecedentes criminais.
“Ele foi me batendo até na cozinha (…). Batendo a minha cabeça pelas paredes” declarou Kesiane ao Portal SelesNafes.com na época.
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A tese da acusação foi que a reação da agredida foi desproporcional. Por isso, o Ministério Público pedia a condenação de Kesiane por homicídio simples, crime que pode ter uma pena que varia de seis a vinte anos de prisão.
A defesa trabalhou com a tese de legítima defesa, alegando que em um momento de agressão e em defesa da própria vida não se pode ter essa dimensão da “força desproporcional”, sobretudo se o agressor tem estrutura física muito maior que a da vítima e, no caso, Eduardo da Conceição tinha 1,72m de altura e Kesiane 1,50m.
Além disso, a defesa relatou que durante os 10 anos em que a união estável perdurou, Kesiane sofreu agressões constantes, o que caracterizou um ciclo de violência física, psicológica e social, já que o casal morava atrás da casa da mãe de Eduardo da Conceição e a dependência econômica do marido fazia a esposa se sentir pressionada pelo julgamento da família e da sociedade. Kesiane chorou durante todo o julgamento.