Por SELES NAFES, de Calçoene
Calçoene, a quase 400 km de Macapá, também tem uma Avenida FAB. Mas, por causa da buraqueira endêmica que domina toda a cidade, ela não parece nem um pouco com a famosa via que divide a capital do Amapá. Infelizmente é fácil de explicar. Um dos mais belos municípios do Estado teve a cidade simplesmente ignorada pelo poder público nas últimas décadas, mas isso pode estar mudando.
A origem do município tem a ver com o que está em seu subsolo. O nome Calçoene (Calço + N de Norte) quer dizer “Cunha do Norte”, uma alusão ao perfil mineral da região. O lugar pertenceu ao Pará até o dia 22 de dezembro de 1956, quando foi emancipado por lei federal.
O surgimento de Calçoene está diretamente ligado ao ouro, mas a cidade parece ter sido acometida pela mesma “maldição” que deixa ricos garimpeiros morrerem na pobreza. O ouro é explorado há quase dois séculos na região, só que isso não significou qualidade de vida aos seus 16 mil moradores, segundo estimativa da prefeitura.
O distrito mais conhecido, o Lourenço, foi sede de uma grande multinacional que drenou o subsolo durante 20 anos e foi embora na década de 1990 deixando para trás centenas de famílias (que hoje são milhares). Com o passar dos anos elas se organizaram numa cooperativa que hoje explora a jazida em meio a dificuldades e polêmicas.
Por causa do clima e do solo, o açaí de Calçoene tem fama de ser o mais saboroso do Amapá. A pesca, o ouro, o Parque Arqueológico do Solstício, a Praia do Goiabal, o Rio Calçoene, história do Cunani e outras riquezas se somam ao dom hospitaleiro do povo, compondo adjetivos essenciais de uma cidade sustentável.
Contudo, na prática, Calçoene foi deixada na lama, no buraco e na escuridão, em todos os sentidos.
Luz no fim do túnel?
Segundo dados da prefeitura, mais de 80% da cidade não tem iluminação pública, e mais de 90% das ruas não têm asfalto de qualidade. Em Calçoene, os motoristas precisam se entender para evitar acidentes já que não existe sinalização em seus 30 km de ruas e avenidas.
“Aqui o motorista precisa olhar pro outro, aí eles já sabem o que fazer”, brinca um visitante que também se assustou com o trânsito.
A sede do município, banhada pelo Rio Calçoene sob forte influência do Oceano Atlântico, tem uma orla que poderia ser urbanizada e se tornar um belo cartão postal, só que mal recebe os pescadores que precisam desembarcar pescado. O trabalho é feito de forma improvisada e perigosa.
Calçoene talvez seja o único município do Amapá que não possui bancos. Apenas o Bradesco e o Banco do Brasil mantem caixas eletrônicos, mas só nas máquinas do Bradesco é possível sacar dinheiro. Nos equipamentos do BB é possível realizar apenas operações simples, como consultar saldo e extrato.
O Banco do Brasil responde a um processo na Justiça movido pelo Ministério Público que quer obrigar o banco oficial a instalar uma agência na cidade que tem mais de 500 servidores municipais, comércio e pesca que fazem o dinheiro circular.
O BB alega que as seguradoras não garantem a integridade de valores porque Calçoene estaria, supostamente, numa área de risco fronteiriça. Oiapoque, que faz fronteira geográfica com a Guiana Francesa, possui agências dos principais bancos.
Instabilidade política
Calçoene viu três prefeitos nos últimos 3,6 anos. Reinaldo foi eleito em 2016, mas com problemas jurídicos foi impedido de assumir.
O eleitor precisou ir às urnas em nova eleição, em 2017, e o escolhido foi Jones Cavalcante, preso no ano passado, cassado, e que hoje aguarda decisão judicial usando uma tornozeleira eletrônica. Já os prefeitos anteriores, também não souberam transformar em riqueza e qualidade de vida as vocações do município.
Em 2019, o presidente da Câmara foi convocado pela Justiça Eleitoral para assumir o município, e acabou sendo efetivado no cargo no fim de 2019. Hoje, 10 meses depois, Júlio Sete Ilhas (DEM) deposita as esperanças nos convênios federais, emendas e na boa relação com o governo do Estado e o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM). Pela primeira vez, Calçoene tem empenhados cerca de R$ 25 milhões para obras, e esse valor pode aumentar.
Articulado politicamente e com um discurso desenvolvimentista, o servidor de carreira da justiça Júlio Sete Ilhas chegou a Calçoene em 2003. Já como prefeito, formou uma equipe de secretários com experiência e conhecimento técnico para captar recursos e modernizar a prefeitura.
Calçoene acabou de licitar uma empresa para informatizar todo o processo de gestão administrativa e financeira da prefeitura. Com a implantação de um software, todo o sistema de Calçoene ficará integrado ao do Tribunal de Contas do Estado (TCE).
“Vai dar não apenas transparência, mas agilidade. Vamos ganhar tempo e tornar a máquina pública mais eficiente. Além disso, estamos investindo numa especialização com a EAP (Escola de Administração Pública) em gestão pública”, explicou o secretário de Administração de Calçoene, Rogério Meireles.
A Parte II desta reportagem especial, que será publicada nesta terça-feira (28), terá uma entrevista com o prefeito Júlio Sete Ilhas, e vai mostrar o esforço contra o relógio para executar a maioria das obras que possui recursos garantidos.
Asfalto e iluminação pública estão entre as prioridades.