Pousos em currais e ladeiras, e o papel da aviação amapaense

No Amapá, especialmente nos anos de Território Federal do Amapá e ainda hoje, os aviadores tem sua história ligada ao desenvolvimento do Estado e ao salvamento de vidas.
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Por MARCO ANTÔNIO P. COSTA

Na última sexta-feira (23) comemorou-se o “Dia do Aviador”, categoria de homens e mulheres fundamentais para a interligação de regiões inteiras. No Amapá, especialmente nos anos de Território Federal do Amapá e ainda hoje, os aviadores tem sua história ligada ao desenvolvimento do Estado e ao salvamento de vidas.

O Portal SelesNafes.Com conversou com o comandante João Oliveira, de 79 anos. Aposentado, é o mais antigo piloto do Amapá, testemunha viva da bravura de gerações que enfrentaram dificuldades de forma tenaz. Ele dividiu conosco algumas de suas histórias.

Aterrissagem em Afuá. Fotos: Arquivo Pessoal

O primeiro homenageado por João Oliveira, que em seu nome rendeu felicitações a todos os colegas que já se foram e aos atuais, foi Juarez Queiros Monteiro, um dos pioneiros da aviação do Amapá.

Certa vez, chegou a notícia da prefeitura da cidade de Amapá, de um garoto que estaria muito adoentado, em estado grave, com tétano, na região das fazendas daquele município de campos extensos. Nesta época, década de 1960, não havia estradas como hoje.

Piloto do governo do território, Juarez certificou-se que na fazenda em questão não havia pista de pouso. A mais próxima era muito distante e o tempo não era um aliado.

João, década de 1960

“Para piorar, o índice pluviométrico da cidade do Amapá nessa época era diferente, chovia mais que hoje e era inverno. Mas sem pensar muito, Juarez aceitou a parada. Decolou de Macapá em um Cesnna 172 Skyhawk dando a sorte de chegar na fazenda em um intervalo da chuva. Observou uma trilha, um caminho dos bois e lá mesmo desceu, perto dos currais”, contou o comandante.

A família já ansiava pelo socorro e logo embarcou o garoto, que foi trazido para Macapá, tratado e curado.

“O dono da fazenda era o saudoso Ernesto Colares e o garoto, seu filho, era o Iraçu Colares, hoje do Sebrae. A aviação tem dessas coisas, e foi determinante a decisão do Juarez. Essa é uma história de dezenas que há”, complementou João Oliveira.

O pouso com duas rodas

Em outra ocasião, Juarez sobrevoou baixo demais o cabo de aço sobre o Rio Araguari, por onde se puxava a balsa que fazia a ligação em Ferreira Gomes, quando ainda não havia a ponte sobre o grande rio. Resultado: perdeu uma das rodas do trem de pouso, que foi arrancada pelo cabo.

No Araguari, com o seu avião predileto, um Cesnna 206

Avisou a torre em Macapá e a pequena cidade logo ficou toda alvoroçada. “Rapaz, o Juarez tá vindo pousar sem uma roda, bora pro aeroporto”, comentava-se em qualquer esquina da Capital Morena.

O governador de então, o general da reserva Ivanhoé Gonçalves Martins, homem com fama de ser austero, mas justo, teria ido, junto com meia cidade, ver o pouso de duas rodas.

“Ele foi prudente e muito perito. Primeiro gastou todo o combustível que tinha, para o caso de um impacto grande, evitar incêndio. Leve, pousou inclinado, de banda, utilizando só um lado do trem de pouso e a bequilha [roda da frente]. Pousou bem e foi aplaudido. Na chegada, ao invés de levar uma bronca do governador como diziam que iria levar, foi parabenizado pela alta perícia”, contou João Oliveira.

João matando a saudade

Pouso na ladeira e nos currais

Uma vez o piloto do Governo do Estado do Amapá (GEA) Paulo Lopes afirmou ver no Comandante João Oliveira o que ele chama de “bom piloto de olho”. Paulo refere-se a diferença de gerações, entre a dele, atual, e a de Juarez. Antes da era do GPS, era “pelo olho” que o piloto se guiava.

João Oliveira conta que tinha Juarez como um alvo na aviação. João é filho de gente humilde da Macapá antiga. Um fazedor de açúcar moreno com uma dona de casa. Jovem, tinha uma loja de conserto de rádios e uma lambreta, quando decidiu vender tudo e pagar seu curso de aviador no Aeroclube do Pará, em Belém.

João Oliveira com neto mais novo

Formou-se na turma de 1966, sendo o escolhido para fazer o voo da turma com o capelão que abençoou os formandos. Ao sair do aeroclube foi aprender a voar de fato nos garimpos do Tapajós para retornar ao Amapá dez anos depois. Já se acidentou no que prefere chamar mais de “pousos forçados” do que “quedas”, cinco vezes, sem, no entanto, ter se machucado muito

Uma das pistas mais brabas da sua época era a Central do Maracá, em Mazagão. Essa pista havia sido construída pelo governo do território por causa de comunidades de extrativistas de castanha da região. Tinha inacreditáveis 220 metros, com o detalhe sombrio de ser feita um declive, uma ladeira, onde era-se obrigado a pousar para baixo – uma pérola da engenharia aeronáutica cabocla.

No dia da formatura. Amiga professora, Áurea Correia, João e Maria Apolônia

Havia pouco tempo que um avião do território havia se acidentado por lá quando surgiu a emergência de salvamento de uma pessoa, um extrativista de nome Salomão que estava doente. Operando um Piper modelo Sherokee, avião de propriedade de Arlindo Eduardo Correia, o Coronel Arlindo, encarou a pista. Pouco combustível, nenhum peso extra, avião metodicamente checado antes da decolagem.

“A prudência vem em primeiro lugar. Tem que checar o avião todo antes de decolar, toda vez. Outro segredo é sobrevoar a pista uma ou duas vezes bem baixo antes de pousar. Eu sabia que lá era pista como fosse de garimpo, o Juarez me avisou. Não tem segunda chance, não há espaço para erro. Na Amazônia tem muita saúva, muita formiga, tem que olhar se a pista não tem algo assim, um ninho grande ou outro obstáculo. Vi que tinha gente ao redor. Meu avião tinha seis lugares, era maior do que o que se acidentou. Toquei os primeiros metros da pista e ainda sobrou pista. O povo ficou feliz e me deu uma saca de castanha, que na volta eu distruní para o pessoal do aeroporto que havia ficado apreensivo com a minha ida”, contou o comandante.

Com familiares após mais um voo

O escritor e jornalista amapaense Hélio Pennafort uma vez fez uma matéria com João Oliveira intitulada “O pouso nos currais”. “Amapalista” e “interiorista” de carteirinha, Pennafort tinha ficado encantado com os pousos ao lado dos currais, com aviões lotados de turistas para verem a pororoca, na fazenda Açaí, na região do Araguari.

Juarez foi embora do Amapá e acabou falecendo, em meados da década de 1990, em um acidente de helicóptero – que ele também pilotava –, na região de Tucuruí, no Pará. Hoje o Amapá conta com os helicópteros do Grupo Tático Aéreo que garantem agilidade em salvamentos sem necessitar de pistas, podendo pousar em quase qualquer descampado. Mas mesmo assim, a aviação de pequeno e médio porte que ajudou a desenvolver este pedaço de Brasil, segue tendo sua importância.

Esta reportagem é uma homenagem em memória de Roberto Fernandes Soares, Ronaldo Canavarro e Floriano Waldeck, ases da Amazônia que partiram jovens para seu último e eterno voo e serão sempre lembrados por amigos, colegas e familiares.

Seles Nafes
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