A comidinha da ‘Dona Raimunda Gostosa’

Neste domingo, o advogado Adilson Garcia narra uma aventura na região do Marajó. Foto: Paulo Braga
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Por ADILSON GARCIA, advogado e ex-promotor de Justiça

Logo quando me tornei advogado, ainda jovem e de cabeleira farta, me associei a outros advogados decanos do Pará: drs. José Maria Meirelles Amarante, Sérgio Souza Filho (in memorian), Luiz Paulo Santos Alvares e Haroldo Lobato (in memorian). As feras do direito me chamavam de “O Cadete”. E na secretaria a Cris Tavares, a genial e diligente miss Jurunas, o bairro do samba mais charmoso de Belém banhado pela Baía do Guajará.

E toda vez que aparecia uma parada indigesta eles enfiavam no meu rab… digo, lombo! Tipo: ir à delegacia acompanhar flagrante, fazer audiências nas longínquas comarcas do interior, atender no plantão etc. etc. Rss.

Certa feita o escritório pegou uma causa em Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó, a maior ilha fluvial do mundo. Era um litígio possessório envolvendo grilagem, pistoleiro e aquela coisa toda que só ocorre no Pará. Como eu sempre fui um agrarista nato, todos eles olharam para mim, com um sorrisinho sarcástico no canto da boca e falaram em coral:

-És tu que vais!

A missão era defender um monte de famílias posseiras contra um barão da política marajoara. Pronto! Pensei comigo:

-Dessa não escapo! – lembrando do advogado e deputado paraense Paulo Fonteles Filho, morto por um consórcio de grileiros e fazendeiros por defender os coitados dos sem-terras, além das centenas de cabeças que rolaram por causa dos infinitos conflitos agrários que no Pará se resolvem no sangue.

-Que nada! É moleza, cadete. É bem ali, óóó (fazendo um biquinho com os lábios), disse-me um dos decanos me ludibriando.

Peguei um mapa e uma régua e medi a distância. Usando a escala, transformei centímetros em quilômetros. Aquele tempo não tinha Google Maps! Rss. Realmente era bem pertinho, em torno de 70 km em linha reta de Belém do Pará.

Vai que é tua,Tafarel!

Fui de carro até o Porto de Icoaraci (25 km) e apanhei um barco tipo gaiola para atravessar a infinitude de águas da Baía do Marajó com ondas gigantes e maresias brabas e desembarcar no Porto Camará, lá do outro lado que a vista não enxerga, na Ilha do Marajó.

Cachoeira do Arari é uma cidade com população em torno de 22 mil habitantes, tem a economia centrada na pesca artesanal e na criação de búfalos. A população em geral é muito pobre e tem um IDH muito baixo (0,546).

Cachoeira do Arari, no Arquipélago do Marajó

É uma cidade praticamente dentro d’água, banhada pelo Rio Arari, com campinas verdejantes de pastagens naturais deslumbrantes em áreas de várzeas. No verão, quando as águas baixam, há uma corredeira em frente à cidade que faz precipitar as águas e por isso chamam aquilo de cachoeira. Daí o nome, mas não é cachoeira ôrra nenhuma.

Bem, no Amapá também estamos acostumados com estelionatos batismais citadinos: tem Laranjal do Jari e eu nunca vi um pé de laranja plantado lá! Tem Serra do Navio e onde você viu ter um navio em cima de uma Serra? Tartarugalzinho é bem maior que Tartarugal Grande! Kkkk.

Quando entrei no barco-gaiola, o marinheiro de convés foi distribuindo um saquinho de plástico para todos os passageiros. Perguntei para que o saquinho e o marinheiro, com seu sorriso sacana faltando metade dos dentes, falou:

-Lá no meio da baía o dotô vai descobrir porque, suprimo!

Na travessia que dura umas três horas, o barco cavalgava ondas gigantes, descia como se fosse num tobogã de águas e batia com força a proa quase rachando a quilha, jogando água na cara de todo mundo. E depois subia. E depois descia. E depois chacoalhava pros lados.

Falei:

-Tô fudido. Pensei que ia morrer na mão de pistoleiros do fazendeiro com uma medalha de chumbo no peito.  Mas pelo visto, não teria essa honraria toda, pois nem ia chegar lá vivo. Kkk.

E botei todos os bofes pra fora. Chamei o Raul várias vezes:

-Raul! Raul! Raul! E a média com pão na manteiga, tapioca com coco ralado e o mingau de banana que comi numa barraquinha no porto de Icoaraci virou comida de peixe. Kkk.

Além de meio de transporte, os búfalos fazem parte da paisagem no Marajó

Cheguei vivo no Porto de Camará, porém mais amarelo do que um chinês com malária! Kkk. Tinha duas vans Bestas (lembra delas?) novinhas com ar condicionado. Pensei: acabou meu sofrimento. Mas o motora logo acabou com minha alegria e falou que aquelas vans iam para Salvaterra e Soure.

-Pra Cachoeira do Arari o sinhô tem que pegar aquele ônibus ali.

Olhei e vi uma sucata, parecia que fora arrematada no leilão da 1ª guerra mundial. Lembrei-me quando tomei posse no Banco da Amazônia lá no interior do Mato Grosso, no começo da década de 1980. Fui de Cuiabá a Diamantino de teco-teco. De lá peguei uma jabiraca da Viação Mazuchini que chamavam de ônibus até Massapé, depois batizada de São José do Rio Claro. O ônibus não tinha metade do assoalho e quando passava numa poça d’água espirrava lama em todo mundo.

Mas aquele tempo eu era peão e agora eu era “dotô adevogado” e pensei comigo:

-De novo? Nãããoooo!

Paramos umas duas vezes para esfriar o motor que esquentou e uma vez para sangrar o caninho do óleo que entrou ar. Ajudei o motora porque eu me tornei um expert sucateiro quando enfrentei o sertão do Mato Grosso. Kkkk.

Cheguei em Cachoeira do Arari de tarde e fui procurar comida, quase morto de fome. No hotel “0 Estrelas” (sim, esse era o nome do hotel), não tinha forro e o banheiro era coletivo. O maior luxo era um ventilador barulhento com uma das pás quebradas. E muito menos restaurante. Pensa que vida de advogado iniciante é bolinho? Rsss.

Fui num barzinho ali perto e não tinha nem um croquete vencido do outro dia pra me dar uma caganeira. Não tinha nem um ovo cozido de efeitos flatulênticos bombásticos! Putz.

Nisso ia passando um guri montado num búfalo. Perguntei pro menino onde tinha um lugar pra comer ali por perto e ele me disse:

-Logo ali tem, mas eu quero R$ 2,00 pra te levar lá.

-Eu pago, mas quero ir montado no búfalo.

-Aí é mais caro: R$ 5,00.

Ah, moleque “fidumaégua” mercantilista!

–Tá! Fechô!

Montei no búfalo ainda de terno e gravata e saí desfilando pelas ruas de Cachoeira do Arari. Que pena, naquele tempo nosso celular era um tijolar sem câmera fotográfica. Eu teria registrado essa presepada e emoldurado a foto como lembrança da gênese advocatícia! Kkkk.

O único lugar que tinha comida era a casa da Dona Raimunda Gostosa, indicação do seu neto, o piloto do búfalo. O garoto me levou na casa da avó dele e após acordar a gentil senhora, no alto de seus mais de 80 anos, perguntei se ela preparava um almoço (digo, janta rss) para mim.

-Ih, suprimo! Nessa hora? O frango tá congelado e eu vendi toda a comida. Mas se o “dotô” esperar eu faço um arrozinho da hora e frito uma linguiça. Pode ser?

Quando a linguiça marajoara começou a fritar, o cheiro delicioso quase me faz comer a toalha da mesa de tanta fome que eu estava.

E enquanto isso, Dona Raimunda Gostosa me serviu um queijo de búfala e um pote com farinha de ralo baguda, feita de “manihot esculenta”, nome científico dessa planta maravilhosa conhecida no RJ como aipim, no sul como mandioca e no norte como macaxeira. Era crocante, a mais saborosa da Via Láctea, te juro!

Gente do céu! Alguém tem que tomar uma providência! O queijo marajoara, que no meu paladar mais está para um requeijão, tem que ser catalogado na ONU como a 8ª maravilha do mundo. Dizem que o melhor tempero é a fome, mais igual queijo marajoara não tem!

De repente, já com alguma intimidade e papo com a Dona Raimunda Gostosa eu arrisquei perguntar se aquela linguiça era preparada por ela mesma ou comprava já pronta. Ela respondeu que era feita em casa mesmo.

Arrisquei mais um pouco e perguntei se o apelido de Raimunda Gostosa era por causa da comida deliciosa que ela preparava com tanta qualidade. Para meu estarrecimento e lembrança eterna ela me respondeu com toda sinceridade e humildade com essas palavras:

-Não, meu dotô. É que quando eu era nova eu era puta e aqui na porta fazia fila, cada um com um peixinho, umas frutas, paneiro de farinha, garrafa de pinga, alguns trocados, outro com uma roupa e eu tchucava gostoso com todos e ganhava a vida assim. Aí começaram a me chamar de RAIMUNDA GOSTOSA.

Prostituição, atividade até hoje não regulamentada no Brasil. Foto: UFMG

Fiquei em silêncio e por alguns minutos viajei em elucubrações, falando sozinho. Eu tenho esse costume de falar sozinho. Você também? Ahh, então somos normais… Kkkk.

Nessa tempestade cerebral eu viajei o mundo e vi o quanto o brasileiro ainda está atrasado, jogando para debaixo do tapete “as sujeiras” da sociedade, fazendo de conta que a prostituição não existe.

Nos países mais adiantados culturalmente, essa que é a mais antiga das profissões – a de mulher de “vida fácil” (Fácil, é? Vai lá! Tenta? Rss) – é regulamentada, tem regras éticas, de segurança e assina carteira de trabalho.

Aquela confissão da Dona Raimunda Gostosa me cortou o coração, porque já velhinha, mais de 80 anos, ao invés de gozar o merecido descanso no final da vida, ainda era obrigada a trabalhar para seu sustento. E eu disse a ela:

-Bom, vovó, não importa o que você faça, o importante é que seja bem feito!

E eu prometo lhe fazer nacionalmente conhecida, pela sua bravura de encarar a realidade nua e crua e por fazer a melhor comida marajoara que eu já provei.

Promessa cumprida, vovó Raimunda Gostosa!

Arrá! Você deve estar curioso quanto ao litígio judicial que fui designado para defender…

Bem, irresponsavelmente eu não tinha medo de pistoleiro e nem de cara feia de fazendeiro grileiro. Provei para a justiça que o latifúndio não cumpria a função social e o juiz sentenciou em favor daquelas famílias, dando-lhes um pedacinho de terra para plantar, morar e chamar de seu. E eu?

Como se vê, vivinho da silva escrevendo mais uma crônica da série “A vida como ela é…”, rendendo as justas homenagens ao insuperável Nelson Rodrigues, não querendo plagiar, plagiando! Kkkk

Seles Nafes
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