A polêmica competência do Amapá sobre a Flota

Área da Unidade de Conservação engloba parte de 10 municípios do Amapá.
Compartilhamentos

Por ADILSON GARCIA*

A Floresta Estadual do Amapá (FLOTA) tem uma área descontínua de 23.694,00 km² dividida em 4 módulos e engloba parte de 10 municípios amapaenses: Mazagão, Porto Grande, Pedra Branca do Amapari, Serra do Navio, Ferreira Gomes, Tartarugalzinho, Pracuúba, Amapá, Calçoene e Oiapoque.

Além da iniciativa da União em outorgar competência para criação de FLOTA em terras da União para os Estados da Amazônia Legal, no Amapá a ideia surgiu com o estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON) em 1999, publicada na obra “O Setor Madeireiro no Amapá: situação atual e perspectivas para o desenvolvimento sustentável. Veríssimo, A. et al. 1999. Macapá: Imazon e GEA”, que abordou a necessidade de planejamento do setor estatal via criação de sua FLOTA, com o objetivo de explorar os produtos da floresta para o mercado externo e interno.

Antes da criação da FLOTA – concebida entre 2003 e 2005 – estava em discussão no âmbito nacional os mecanismos legais para outorga da gestão florestal, concretizados na Lei 11.284/2006, que adota uma política pública de gestão florestal descentralizada visando o desenvolvimento sustentável do potencial florestal por meio de processos de concessão onerosa e não onerosa.
Logo, o Estado do Amapá teve tempo suficiente (desde 1999) para fazer consulta prévia e laudo antropológico visando identificar as ocupações anteriores a 12 de julho de 2006. Não fez e as consequências dessa negligência são as demandas jurídicas intermináveis nos foros estadual e federal envolvendo ocupantes das terras pertencentes à FLOTA criada.

O MPF vem fazendo o papel do Estado exigindo de seus órgãos de terra e de meio ambiente transparência visando disciplinar o uso e acesso à FLOTA. Entretanto, a ausência de laudo antropológico é limitador desse processo.

Para atender as condicionantes estabelecidas pela União para efetivação do instituto de delegação de competência, o Amapá editou a Lei 1.077/2007 criando o Instituto Estadual de Florestas (IEF) com a finalidade específica de executar a política florestal em consonância com as macropolíticas de desenvolvimento do Estado.

Os 23.694,00 km² da unidade são divididos em 4 módulos. Fotos: Ascom/GEA

O IEF foi um marco decisivo para o Amapá tomar posse de sua competência material e formal na gestão de outorga florestal pública, estabelecendo instrumentos jurídicos para elaboração do Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) e do Plano Anual de Outorga Florestal (PAOF) da FLOTA, inclusive com competência para criar instrumentos administrativos para reconhecer as ocupações anteriores a 12 de julho de 2006 (art. 5º, § 1º, da Lei 1.028/2006, c/c art. 6º da Lei 11.284).

Desta maneira, o Amapá, após efetuar investimentos orçamentários vultosos em relação ao capital humano, infraestrutura e logística, cumpriu as condicionantes do Protocolo de Intenção e do Termo de Cooperação Técnica da Gestão Florestal, sendo habilitado para efetuar os institutos discricionários exigidos para delegação de competência material e formal em floresta nativa em terras da União (PMFS e PAOF) de sua FLOTA, os quais foram submetidos à aprovação do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), em consonância com a Lei 11.284.

Destarte, no momento em que o SFB recepciona o PAOF da FLOTA, reconhecendo-a como Floresta Pública Estadual, a atuação do Estado do Amapá junto à União, que antes era regido pelo Instituto da Discricionariedade, torna-se Instituto Vinculante, visto que atendeu a todas as condicionantes estabelecidas pela União, configurando ato jurídico perfeito a outorga efetuada pela União ao Estado do Amapá para gerir e administrar sua FLOTA.

Tal fato foi referendado pelo Decreto Federal 6.291/2007, que transferiu essas terras da União para o Estado do Amapá em definitivo (art. 1º: Ficam transferidas gratuitamente ao Estado do Amapá as terras públicas federais situadas em seu território… § 1º a transferência de que trata o caput fica condicionada: IV – à permanência da destinação das terras localizadas nos limites da floresta pública estadual criada pela Lei Estadual 1.028, de 12 de julho de 2006, à preservação ambiental e uso sustentável da terra, em observância à Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000, e, no que couber, à Lei 11.284, de 2 de março de 2006, sob pena de reversão automática ao patrimônio público da União).

10 municípios fazem parte das delimitações da Flota

Desta forma, é de clareza solar que a FLOTA está sob jurisdição do Amapá e não da União. Logo, o MPF não teria atribuição e o foro federal é em tese incompetente (art. 109, I e IV, CF).

A FLOTA destina-se exclusivamente à concessão florestal, sendo proibidas diversas atividades, principalmente atividade mineral que traz insegurança jurídica diante da vedação expressa da Lei 11.284 (“art. 16, § 1º: É vedada a outorga de qualquer dos seguintes direitos no âmbito da concessão florestal: IV – exploração dos recursos minerais”), vez que provoca a reversão automática ao patrimônio público da União.

Isso precisa urgentemente ser observado pelos órgãos afetos, pois a lei que criou a FLOTA (Lei Estadual 1.028) não faz nenhuma referência à existência e atividades de mineração. E é público e notório que há mineradoras internacionais lavrando dentro da área, não obstante a vedação legal.

O MPF, que age como um lobo voraz contra posseiros humildes negligenciados quando da criação da FLOTA, inclusive pedindo prisão até de advogados que defendem essa tese que ora abordo neste estudo, comporta-se como cordeiro de fotógrafo em relação às poderosas mineradoras. Estranho!

Ocupações ilegais já foram registradas na unidade de conservação

A Lei da FLOTA não estabeleceu nenhum critério permissivo para realização de exploração mineral, inclusive em seu entorno e área de amortecimento, remetendo o exegeta às regras da Lei 11.284.

Como dito, a autorização mineral na FLOTA abre uma possibilidade de reversão de terras do Amapá para a União a partir da concessão do direito de lavra pela agência reguladora da mineração (ANM), inviabilizando, assim, o principal objetivo de criação da FLOTA, que é a outorga florestal.

E a cereja do bolo seria a condenação do Estado em indenizar as empresas que participaram do processo licitatório e detêm contrato de concessão florestal, prejudicando inclusive os ocupantes anteriores a 12 de julho de 2006 que ainda não tiveram o reconhecimento do Estado e da União pela falha de ambos no que tange aos estudos antropológicos.

Diante do exposto, exsurge cristalina a tese de que o Estado do Amapá tem competência material e formal para Gestão Florestal de sua FLOTA, pois todos os atos administrativos para outorga desta competência da União ao Amapá se concretizaram na aprovação do PAOF pelo SFB, de maneira que o ato de Outorga Florestal é do Amapá e não da União.

Potencial madeireiro da unidade é cobiçado

Ora, se realmente o Amapá não tem competência para gerir a FLOTA, como vem concedendo anuência para concessão para pesquisa e exploração mineral e fazendo licitação onerosa de estoques florestais para empresas nacionais e internacionaisˀ Em 2015 o Amapá abriu concorrência pública para concessão onerosa de módulos da FLOTA, sagrando-se vencedora uma empresa de capital estrangeiro.

Por isso, os ocupantes antigos hoje travam na justiça este reconhecimento e são tratados como criminosos usurpadores de terras públicas e de recursos florestais. Amiúde são acusados de integrantes de organização criminosa, a vala mais comum hodierna das tipificações do feroz MPF, vala essa que engole madeireiros, posseiros e até advogados que ousam divergir do entendimento dos meninos do Parquet, impondo uma ditadura da hermenêutica que está mais para uma teratologia jurídica, senão uma abominável ideologia do atraso.

Então, se há organização criminosa ao se abraçar teses, que tal arrolar no polo passivo juízes e desembargadores estaduais e alguns ministros do STJ que ousaram divergir da soberana magistratura de pé? Não prenderam advogado? Prende quem defere também, pô! Soube que a OAB está tomando providências junto ao CNMP e CNJ para apurar essa criminalização da advocacia, tardiamente. Mas antes tarde do que nunca!

É importante acrescentar que no PMFS não há supressão da vegetação (corte raso) como ocorre no agronegócio para plantio de grãos, cuja licença ambiental autoriza a supressão da vegetação. Por isso, não tem o menor cabimento a imputação de crime ambiental contra a flora nas ineptas denúncias do MPF quando se trata de manejo florestal nas áreas da FLOTA, “data maxima venia”. E o pior é que parte do judiciário tem engolido esse engodo sem mastigar!

É que no manejo florestal (regulado pelo Dec. 5.975/06 e Instrução Normativa MMA 05) apenas algumas árvores das espécies inventariadas no PMFS serão cortadas – geralmente as de maior valor comercial, entre 3 a 5 árvores adultas por hectare.

Após a aprovação do plano de manejo, deve-se executá-lo em consonância com a Autorização de Exploração (AUTEX), expedida pelo órgão licenciador responsável pela gestão da floresta pública e ao final emitir o Documento de Origem Florestal (DOF), para fins de transporte.

Apreensões ilegais de madeira extraída da Flota são corriqueiras

Enfim, o PMFS é documento com características técnicas que legaliza a atividade de exploração da floresta. Nele estão inseridos todos os dados técnicos e planos de utilização de determinada área florestal, de maneira que o empreendedor tem que submeter ao órgão licenciador do Estado seus PMFS. Sendo aprovada a AUTEX, configura-se no meu ver um ato administrativo vinculante por ter atendido a todos os atos legais estabelecidos no Decreto 5.975/2006. Mas o MPF baixou recomendação para suspender as AUTEX, atos jurídicos perfeitos, acabados e vinculados. E os órgãos destinatários da recomendação (que não tem eficácia vinculante), com seus telhados de vidro, cumprem sem discutir com medo das operações cinematográficas da PF.

Desta forma, atendendo as condicionantes da IN nº 5 do IBAMA, com a aprovação da AUTEX todos os procedimentos administrativos são superados, inclusive quanto à inserção de novos dados da terra e do PMFS. Ademais, essa IN já previa Acordo de Cooperação Técnica no caso de outorga de competência: “… nos casos que lhe forem delegados por convênio ou outro instrumento admissível, ouvidos, quando couber, os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal” (artigo 3º, § 4º, III).

Os Estados da Amazônia Legal deveriam ter realizado antes da criação das FLOTAs e FLONAS o Estudo Antropológico para identificação das comunidades existentes nas áreas e a readequação do plano de Manejo dessas Unidades de Conservação para inseri-las na gestão, com a necessária consulta prévia.

Entretanto esse processo não foi realizado pelos Estados ou observado pelo SFB na aprovação do PAOF, fato que ocasionou intenso e tumultuário processo de judicialização e criminalização interminável, arrebentando a corda, como se sabe, sempre do lado mais fraco.

Em alguns Estados a Justiça Federal por iniciativa do MPF suspendeu o processo licitatório para a concessão de manejo florestal nas Florestas, inclusive em FLONAS, como aconteceu em Itaituba I e II e Trairão, no sudoeste do Pará.

Esses Estados ignoraram informações do próprio plano de manejo de que nessas áreas e em áreas vizinhas vivem comunidades tradicionais e que havia propriedades e assentamentos.

Explorações minerais ilegais também são registradas na unidade de conservação

Vale ressaltar que a justiça federal atendendo o MPF, obrigou, ainda, que fosse realizada uma redefinição dos limites das unidades de manejo que seriam destinadas à concessão florestal, para que não fossem prejudicadas a população tradicional e as propriedades que ocupam a FLOTA e a FLONA ou nas áreas vizinhas a elas.

Mas no Amapá não! Aqui a solução é cadeia para a cadeia produtiva! Daqui a pouco estarão prendendo até cronista (rsss)! Cáspite!
É importante enfatizar que o Laudo Antropológico apontaria as inúmeras falhas do plano de manejo, corrigindo o equívoco na perspectiva histórica de ocupação da área onde se criou a unidade de conservação.

Essa informação é deveras pertinente porque a partir dela seria possível aferir a antiguidade e tradicionalidade da ocupação no local e evitar essa horrorosa criminalização em cima de inocentes campesinos que nada mais querem senão trabalhar e tirar o sustento da família das riquezas das suas áreas.

E o açoite só foi sentido no lombo desses ocupantes anteriores a criação da FLOTA que, descapitalizados, se socorrem de adiantamentos de madeireiros interessados no estoque florestal, que financiam inclusive os custos dos planos de manejo. Daí, na visão míope causada pelo ar condicionado dos gabinetes e pelo nó da gravata, baseando-se em mensagens mal interpretadas do whattsApp, está criada uma organização criminosa.

Importante destacar que a população da região Amazônica é diferente das demais regiões do país, pois vive do extrativismo, caça e pesca e utiliza no máximo 3 (três) hectares no plantio de culturas de subsistência (feijão, arroz, mandioca e milho).

Difere das demais regiões porque não faz uso de imensas áreas como acontece no agronegócio (grãos e pecuária), no qual há supressão da vegetação em larga escala.

Mas esse processo não foi homogêneo na Amazônia, visto que em alguns Estados a concessão florestal onerosa e não onerosa foi e vem sendo realizada sem judicialização/criminalização.

Recentemente, em outro artigo, citei a atividade minerária proibida pela Lei. 11.284 na área da FLOTA, com licença ambiental do Estado para empresa internacional.

Algumas autoridades ambientais se abespinharam e em tom de insulto me mandaram a Decisão 259/2020-GAB/SEMA cancelando a LO 206/2016 da Beadell Resources Mineração Ltda (atual Mina Tucano). Mas a mineradora continua lá, firme e operante! “Vôôôte”!
Não que eu seja contra a mineração, afinal temos que desenterrar nossos potes de ouro (literalmente rss), gerar emprego, renda e impostos. Mas precisamos encontrar um denominador comum, que atenda ao interesse de todos, extirpando mais uma das inúmeras raízes do atraso do Amapá.

Desta maneira, sem as informações de demarcação da FLOTA e da definição de beneficiários ocupantes, não há como se afirmar que o empreendimento não atinge populações tradicionais porque sequer se sabe onde estão e quem são elas.

Ou seja, é como tatear no escuro, em cima de “achismos” que revela um amadorismo sofrível ou uma pressa (in)compreensível…

Existem tensões entre concessões e comunidades tradicionais conduzidas pelos Estados. É fato! Por isso, esse modelo de gestão de florestas públicas precisa ser repensado porque tem sido um vetor de expropriação de comunidades tradicionais, uma vez que o reconhecimento de direitos territoriais e culturais pelo Estado, no contexto das concessões, encontra-se flexibilizado pelas práticas estatais articuladas a empreendimentos capitalistas, que prevalecem sobre a organização, uso e controle do espaço territorial.

Após 15 anos de vigência da Lei 11.284 (Lei Nacional de Florestas Públicas) e da Lei 1.028 (Lei Estadual de criação da FLOTA), é preciso uma análise e definição desse processo de delegação de competência da União para os Estados da Amazônia Legal, em especial nas terras destinadas a concessão florestal, diante do quadro analítico desde os processos embrionários como do PPG-7, Protocolo de Intenções e Termo de Cooperação Técnica visando ordenar a exploração madeireira de forma legal através do Instituto de Outorga de Competência.

Os erros cruciais pelo processo de valorização das concessões onerosas com o indisfarçável interesse arrecadatório, em detrimento do reconhecimento das ocupações tradicionais, precisam ser corrigidos, pois é possível conviver em harmonia a concessão onerosa e não onerosa em Florestas Públicas criadas em terras da União, respeitando as populações tradicionais e sua relação com a terra em que habitam, propiciando a elas a utilização dos recursos da floresta.

A Lei de Gestão de Florestas Públicas veio para solucionar problemas crônicos na Amazônia, em especial a grilagem e o desmatamento criminoso, os quais têm gerado enormes conflitos e desigualdades na região. A complexidade, a diversidade e a extensão do ambiente amazônico tornam os desafios igualmente grandes e complexos na gestão dos recursos naturais.

Mas pelo que tenho visto, ao contrário, tem é criado mais problemas por causa das interpretações zarolhas!

Para finalizar, vou dar um alô para os meninos do LFG e do Damásio: estudem um pouco de botânica também! Árvore tem ciclo de vida: germina, cresce e morre! Se não aproveitar economicamente, cai e apodrece. E daí não serve nem para fazer carvão para seu churrasco de picanha de ouro!

Enquanto isso tem gente passando fome em cima das imensas riquezas da Amazônia…

*Promotor de Justiça do Estado do Amapá

Seles Nafes
Compartilhamentos
Insira suas palavras de pesquisa e pressione Enter.
error: Conteúdo Protegido!!